Velhos amigos.

O telefone tocou e era ele. Fazia tempo que eles não se falavam. Eram amigos, mas andavam distantes. Estavam separados por uma barreira de reuniões intermináveis, viagens de trabalho, stress, famílias, ponte-aérea.  Havia sempre algo que conspirava contra um encontro, um papo que fosse.

Mas o telefone tocou e eles se falaram. A pedido dele, o papo tinha que ser ao vivo. Olharam suas agendas, consultaram suas secretárias e por fim marcaram para dali a uma semana. Ficou no ar o assunto, ficou em suspense, uma interrogação. O que será que ele queria falar? Não quis adiantar nada pelo telefone, achou que não era o caso. Chegou a pigarrear e concluiu: – “Só pessoalmente eu falo! Só pessoalmente!”. Os dias passaram corridos. E mesmo assim, nada na semana foi capaz de apagar aquela interrogação. Às vezes, tomando um café, ou no intervalo para um xixizinho, até mesmo durante um almoço, aquela dúvida surgia. E os dias se passaram. Até que aquele charmoso Peugeot 1958 estacionou no pátio. O burburinho entre os guardas do prédio e os manobristas foi inevitável. Não é sempre que um carrinho como aquele parava ali. E para uma vista acostumada com um mar de Audi A3, era impossível que não se formasse um círculo em volta daquela preciosidade. Ele já estava acostumado a isso. Respondeu as perguntas padrões dos curiosos, educadamente. Até porque não sabia fazer de forma diferente. Era um sujeito solícito, de família nobre, como se dizia antigamente. Em seu paletó levemente desgrenhado, mas não ao ponto de parecer relaxado e, sim, elegante, deixou aquele círculo de curiosos para trás e caminhou para a recepção. Antes, a pedido do segurança, teve que cadastrar sua digital. Era a norma. E ele, que não era muito de contrariar normas, colocou sua digital naquele aparelho. E mais uma vez. E outra, e outra. Chegou a pensar na tecnologia dos dias de hoje. Avanço? Perda de tempo? Ficou na dúvida, já que teve que colocar a digital mais uma vez para se cadastrar definitivamente e aí, sim, se dirigir a grande porta de vidro, para colocar novamente sua digital ali e por fim adentrar a grande caixa branca. Antes de falar com a recepcionista, reparou no quadro da entrada. Uma bela fotografia feita pela Rochelle Costi. Uma foto em cores vibrantes de um carrinho de pipoca. Como o simples é belo. Poderia escrever ou pensar um tratado completo sobre a beleza que aquele quadro passou, mas foi interrompido por algo. Primeiro era um zumbido. Depois foi ficando mais claro. Olhou para o lado e viu a boca da recepcionista se mexendo, mas estava tão perdido em pensamentos, que a voz dela só chegou alguns segundos depois. Sim, disse que tinha uma reunião agendada. Não contou que veio para a reunião porque não quis falar por telefone sobre o assunto. Não entrou nesses detalhes. Achou desnecessário. Passada essa etapa, havia mais uma catraca. Digital e nada. Digital e nada. Na terceira, a catraca resolveu ceder. Sinal verde. Ele entrou. Passou pela porta de vidro fosco. Uma porta imponente. Ao entrar, reparou de cara numa grande planta, um bambu mossô. Também sentiu o ar condicionado frio, muito frio. Ficou impressionado com a valentia do bambu. Chegou até a ficar comovido com sua obstinação em ficar de pé ali, imponente, numa temperatura sibérica.

Observou e foi observado. Não conseguia se desligar do seu olhar documentarista, que procurava nos detalhes, uma nova história a ser contada. Antes de subir as escadas, ainda olhou de relance um quadro. Um Dudi Maia Rosa, de uma cor vibrante que contrastava com o branco ao redor. Viu ainda uma nova escada dentro da escada. Colada na parede, como se o chamasse para uma nova dimensão.

Seguiu seu caminho acompanhado por uma gentil secretária. A sala era a 2. Será que ainda olhavam o seu carro? Ele pensou. Por um breve instante se viu sozinho na sala e repassou a conversa mentalmente. Como tocar no assunto? Perdeu o caminho quando viu um pote de jujubas. Por que jujubas? A resposta veio rapidamente. Quando percebeu, estava com a mão esticada e sua dúvida agora era se pegava a verde ou a vermelha. Pensou num daltônico que come a laranja achando que é a de limão. Resolveu pegar a vermelha. Olhou ainda para um pote de biscoitos de polvilho. Procurou de relance o queimadinho, mas desistiu. A jujuba trouxe uma série de lembranças. O suco que vinha embalado no plástico em formato de carro, a bala Banda, a bala Boneco, o cine Rian da praia de Copacabana. Tudo em seqüência acelerada. E foi então, que a porta abriu e finalmente eles se encontraram.

E como só acontece com os amigos, eles não vacilaram nem por um segundo. Falaram como se reiniciassem uma conversa terminada ontem. Suas paixões alvinegras, Vasco e Botafogo, foram o ponto de partida. Não havia antagonismo, por um instante era como se fossem companheiros de torcida. Uma torcida por dias melhores que pareciam chegar. Lembraram de como se conheceram e refizeram a trajetória daquela amizade. Os primeiros trabalhos, os percalços, riram das dificuldades de remontar um comercial na moviola. E foram passo a passo chegando juntos no assunto que anos depois os colocava de novo frente a frente. E só então, um pequeno silêncio se impôs. Quase que em uma coreografia, levaram um café até a boca. Olharam os dois para o mesmo solitário polvilho queimadinho que residia no fundo do pote. Impossível de ser alcançado. Ele resolveu falar o que enfim o trazia. E na cadeira da ponta direita, quase que numa superstição, ele se preparou para ouvir. Cruzou a perna, levou o indicador à sobrancelha, repetiu um movimento que lhe acompanha desde a infância. Você tem acompanhado a revista? A resposta veio antes mesmo do fim da pergunta: claro. Gosta, não gosta, não tem uma opinião formada? Ele finalmente sabia o assunto. E aquilo lhe deu uma alegria que se formatava na resposta acelerada: acho muito legal. E agora foi a vez de uma pequena titubeada. Então, eu tava pensando se, sei lá, você queria trabalhar essa conta? E ele respondeu: porra…

Texto escrito com o Edu Lima para anunciar a conquista da conta da Revista Piauí pela F/Nazca.

6 pensamentos sobre “Velhos amigos.

  1. juliana uchôa disse:

    de emocionar. e lendo agora no blog, depois de algum tempo, é ainda mais incrível. estive de novo lá na f/nazca por alguns minutos. tks!

  2. cristiele disse:

    sempre leio seu blog, gosto muito e fico bolando num comentário sensacional para postar aqui. aí, não escrevo. kkk

  3. Bruno Pereira disse:

    *Acho que todo mundo volta no tempo e lembra de algum pote de jujubas…

    **Aquele “porra…” é arrepio puro.

    Muito bom, Kassu. Obrigado por compartilhar. =)

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