Arquivo mensal: fevereiro 2013

Crédito ou débito?

Um resto de café gelado no fundo da xícara. Um pequeno biscoito amanteigado com a sorte de não ter sido devorado. Um garçom levemente ansioso com uma máquina na mão. Esse era o momento mais angustiante do almoço para o meu amigo Cesar Herszkowicz. Quando surgia o pavoroso enigma: é débito ou crédito? Em seguida, a mesa inteira passava por longos segundos de sofrimento. Uma espera que sempre terminava com o Cesinha dando a resposta errada. Para ele, o mundo carecia de uma nova palavra: “crébito”.

Penso nesse enigma. Na ausência do meio-termo. Você tem que optar pelo crédito ou débito. Só que é muito mais fácil entrar no débito do que ficar no crédito. A regra vale para conta bancária ou relacionamentos.

O gerente do banco liga para avisar que a sua conta entrou no vermelho. O caixa eletrônico faz questão de ressaltar que a taxa agora é mais pesada. O Serasa adentra nos seus sonhos. O débito nunca passa desapercebido. É como o primeiro fio de cabelo branco. Um exibido. O crédito é o esperado. O comum. Para que o gerente note a sua existência, você precisa de uma conta eikebatistiana. Caso contrário, você não fez mais do que a sua obrigação de estar no azul.

De um jeito ou de outro, estamos sempre devendo. Mesmo sem saber. São tantas as funções que algo ficará pendente no balanço final. O profissional exemplar, em alguma hora, vai descobrir que está em débito com a família. A mãe dedicada sente-se em débito com a profissão. O amigo entra em débito por não responder uma ligação. Nos múltiplos personagens que exercemos, há algum que ficou aquém do esperado. Que não bateu a meta. Ficamos a esperar um gerente personnalité que nunca surge. E assim,  entramos no cheque especial das relações.

Procuramos conforto na crença de que o montante de crédito vai amortizar a dívida. Sinto informar: não vai. Se você não cumpriu com as expectativas, não adianta discar 1. Se você deu um mole, não tente teclar 2. Pegue o seu extrato e confira. Aquela informação com letras pequeninas é o seu crédito. O asterisco de letras garrafais vermelhas é o seu débito.

Volto para a cena do almoço. Pego o biscoito amanteigado. O Cesinha estava certo. A vida deveria ter uma maquininha diferente da Cielo. Uma que permitisse a pergunta: é “crébito”, senhor?

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Uma volta.

Volto ao mesmo tema. Um ritual de despedida que, por mais que eu decore, sempre me surpreende. O momento da pergunta. Aquelas hora em que as malas estão na porta e as minhas filhas olham nos meus recantos mais escondidos. Porque elas sabem aonde eu desmancho. E dessa vez, elas perguntam em uma coreografia não ensaiada: volta bem?

No caminho para o aeroporto, penso nas voltas que sonhamos. Um sabor, um momento, o som de um alô, uma sensação. Todos nós guardamos, mesmo que secretamente, o desejo de que algo nos volte.

Uma sessão da tarde carregada da urgência de um Nescau com misto-quente. Uma manhã gelada em que ninguém imaginou que teria onda e você acreditou. Um abraço maternal naquela crise de dor de ouvido. Um cheiro distante de bronzeador na toalha de praia. Um sabor que ficou perdido na infância, mas que volta ao fechar os olhos. Aquele alívio que surgia no décimo segundo após o uso de Merthiolate. A mera visão do Zico ao entrar em campo. Uma chance de pedir desculpas ou de ter o que não foi vivido.

Minhas filhas querem que eu volte bem. Já falei sobre essa impossibilidade de resposta que me aflige. Resolvo pegar emprestado o olhar delas. Elas me querem de volta como aquele filme visto dezenas de vezes. Querem essa sensação circular. Essa certeza. A diferença é que elas admitem. E é um poder admirável esse.

Podemos dizer que as crianças são românticas. Que são meras sonhadoras.  Cada dia mais, tendo a acreditar que elas são é corajosas. Porque conseguem colocar na mesa, mesmo que tateando as palavras, o sentimento mais profundo. Uma inveja, uma aflição, uma saudade que seja. Só que em alguma hora, essa coragem se vai. Até lá, aproveito. Sem revelar que guardo comigo uma volta impossível. A volta da irresponsabilidade. Da fala sem filtro, do não pensado. De ser que nem elas: criança novamente.