1993. Aeroporto de Chicago. Estou dentro de uma van, sem hotel reservado e com uma mala repleta de gaitas. O motorista da van aguarda os outros passageiros. Enquanto isso, ele sorve mais um gole do seu refrigerante de 2 litros. Na outra mão, repousa um sanduíche do tamanho de uma criança de 5 anos, regado com doses generosas de mostarda. Entre as pernas, há um pacote de batata frita. Absolutamente surpreso com toda aquela comida, ouço uma pergunta feita com a boca cheia:
– O que (nhac) você veio (nhac) fazer aqui?
Hipnotizado pelo pedaço de queijo que está preso no seu queixo, demoro alguns segundos para responder:
– Eu quero conhecer mais do blues.
Ele ri. O pedaço de queijo desprende e cai fazendo barulho ao pousar na sua perna. Da perna para a boca foi um milésimo de segundo. Ele ri mais alto agora:
– Blues? Quem liga (nhac) para isso?
Eu tinha acabado de chegar na Sweet Home Chicago. Em busca dos ídolos, do verdadeiro blues, do aprendizado. Minha euforia foi soterrada pelas 20 mil calorias daquela van.
No dia seguinte, com a programação musical da cidade em mãos, quero derrotar a profecia do meu anfitrião glutão. Descubro que Kingston Mines, B.L.U.E.S e o Buddy Guy’s Legends são alguns dos bares com programação de blues nos 7 dias da semana. O calendário previa shows do Sugar Blue, Billy Branch, Otis Rush, Magic Slim, Big Time Sarah, Peter Madcat, Luther Allison, Jeff Healey e o grande Buddy Guy. Minha temporada estava garantida. Adentro orgulhoso pelo Kingston Mines e me deparo com o salão vazio. A profecia não estava tão errada.
A vida de um músico de blues não é fácil nem para os mestres, pensei. Naquela viagem, comecei a desistir de uma carreira de músico profissional. O menino branco brasileiro não poderia esperar mais do que uma lenda do blues. E eu vi os grandes nomes do blues tocarem para salões vazios com ingressos a 8 dólares. De quinta a sábado, o panorama mudava um pouco. As casas ficavam sempre cheias. De domingo a quarta, já era bem diferente. Buddy Guy era o filho pródigo da cidade. Já estava em uma situação mais confortável. Era uma exceção.
Toalhas brancas? Esquece. Mal havia roadie nos palcos. Não foram poucas as vezes que vi uma lenda montar e desmontar o palco praticamente sozinha. O fato de ser branco e ter vindo de tão longe facilitou muito as coisas. Acabei ficando próximo de vários músicos. Eu sabia solos inteiros, riffs, nome de canções. No fundo, não eram muitos os que ligavam para eles. O brasileiro que conhecia a história deles era um conforto não esperado.
Falo sobre essa época porque estou ouvindo o disco do Ben Harper e Charlie Musselwhite chamado: Get Up! Ben Harper aproveita a fama já alcançada para se dar ao luxo de gravar o que bem entende. E divide um disco inteiro com o gaitista Charlie Musselwhite. Ele precisava disso? Não. Poderia muito bem fazer mais um disco solo e faturar com uma turnê pelo mundo. Só que ele fez diferente. Ele abriu espaço para um ídolo. A capa é bem clara. Ele e Charlie têm a mesma importância ali.
Em Get Up!, Ben Harper é de uma gentileza sem fim com Musselwhite. As músicas foram pensadas para que o gaitista tivesse o destaque que sempre mereceu. O espaço para os solos, as bases com presença da harmônica, até mesmo o material de release que antecedeu o lançamento do CD. Tudo foi pensado para honrar um dos primeiros “white bluesmen”. Um homem que vem tocando a sua gaita repleta de acordes e melodias por décadas. O resultado é um disco poderoso. A voz rasgada de Ben Harper se encaixa perfeitamente com a gaita levemente distorcida de Musselwhite.
Ao reverenciar Charlie Musselwhite, Ben Harper antecipou-se ao tempo. É fácil homenagear os ídolos quando eles estão mortos. Ele o fez antes. É uma gentileza bonita de se ver. E melhor ainda, de escutar. Se eu tivesse o endereço do motorista da van, mandava esse CD de presente, uma caixa de Herbalife e um bilhete escrito: Ben Harper liga para isso.
