Música é a minha fluoxetina natural. É o meu Prozac. Meu playlist é “Banho das Sete Ervas do Descarregos”. Olho para as canções como uma curandeira olha ao seu redor. Stevie Wonder é o meu “quebra barreira”. Marvin Gaye é o meu banho contra mau olhado. Jorge Benjor é a minha “garrafada para gastrite”. Tom Jobim é o meu chá de “amansa tudo”. Meu iPod é a minha tenda da Dona Coló. Eu sei como cada música vai agir.
Se a raiva é grande, dilua em um chá de Kurt Cobain com Nine Inch Nails. Se a alegria é intensa, tome um banho de Wilson Picket com uma pitada de Otis Redding. Se a tristeza dói, evite Radiohead. Tenho tabuletas e receitas para cada mal. Na minha banca, disponho de diversas poções mágicas para atrair coisas boas. Basta um play para que a alquimia comece a funcionar. Na verdade, a música me emociona frequentemente. Nela, eu posso reencontrar valores perdidos, buscar lembranças, vasculhar os meus sentimentos.
Poderia citar inúmeros momentos em que chorei com uma música. Metade deles conectados com as minhas filhas. Não vem ao caso. Prefiro falar de dois personagens que me fazem acreditar que é possível. Charles Bradley é o primeiro deles. Um cantor maravilhoso de soul que só foi descoberto depois dos 60 anos de idade. Isso mesmo: 60 anos. Até então, trabalhava como chef de cozinha e juntava seu dinheiro ao longo das décadas para um dia tentar realizar o seu sonho. Conseguiu.
Lembro do impacto de ouvir a sua voz carregada de verdade. A canção era “The World (is going up in flames)”. Achei que era uma gravação antiga. Como eu pude ficar tantos anos sem ouvir esse cara? Uma rápida pesquisa revelou toda a história de Charles Bradley. O que já era amor virou paixão no momento que eu vi um vídeo de um show dele. Ele grita, chora, escancara cada recanto da alma. Ele canta puxando os sentimentos do dedão do pé. Nada fica de fora. Ele reergue as minhas crenças em dois discos maravilhosos: “No Time for Dreaming” e “Victim of Love”.
Depois, veio o Rodriguez. O Max de Castro falou de um documentário chamado “Searching for Sugar Man.” Isso foi antes do Oscar. Fiz tudo legalmente como manda o figurino. Entrei no iTunes e baixei o danado. Quando eu percebi, estava chorando dentro de um avião. É das histórias mais inacreditáveis que eu já vi. Se fosse uma ficção, eu acharia que pesaram a mão. Porque afinal de contas, isso nunca poderia ter acontecido. Só que aconteceu.
Resumindo: o cantor e compositor Sixto Rodriguez lança dois discos nos EUA. Os dois são um fracasso retumbante. Nesse mesmo período, início dos anos 70, os discos chegam à África do Sul. Rodriguez vira um ídolo maior do que Elvis Presley. Sua música vira o hino de uma geração inteira. Pessoas tatuam seu rosto no corpo, colocam seu nome nos filhos. Só que ele nunca soube de nada disso. Para os sul-africanos, era um ídolo que tinha se sucidado no palco. Até que décadas depois, algumas pessoas resolvem investigar o que tinha acontecido. É um história que dissolve as minhas desconfianças. Escuto os seus discos como quem procura a fé perdida. E a encontro.
Ouvir Charles Bradley e Rodriguez é muito mais do que música. É sobre esperança. Na minha barraca de ervas, eles são o novo elixir. Coloco o fone no ouvido como quem toma um banho de sal grosso. De pipoca. De cheiro-cheiroso. Tudo está equilibrado. Consigo até admitir a possibilidade de habitar o mesmo mundo que o Malafaia.
Maneiro o post Kassu. Dois outros filmes inspiradores que vi este ano junto com o documentário do Rodriguez foram o “Beauty is Embarassing” e a “Caverna dos Sonhos Esquecidos”. Não conhecia o som de Charles Bradley. Valeu a dica.
Anotados. Vou tentar achar esse documentários. Valeu.
Porque ouvir Charles Bradley e ler esse texto é preciso. Viver não.
Com a benção de Bradley seguimos em frente.
André Kassu, meu caro. Sem conhecê-lo de perto, sinto que temos coisas
em comum. Uma delas é a paixão pelos sons de Blues, que você já deixou
claro com o brilhantismo da sua tecla. Ela lhe é fácil, escorrega com clareza
em suas mãos, como notas bluseiras abusadas e doces. Estou fazendo a prova:
ouvindo o Charles Bradley enquanto traço as vogais desse papo, nosso idioma
tão equilibrado entre consoantes e as ditas cujas. Ainda há pouco registrava
pensamento parecido ao gancho que você usa para exorcizar a dificuldade
de entender que somos contemporâneos de Feliciano e sua teologia desencontrada
até em porões onde a mediocridade faz ninho e copula. Por que será
que descemos, nós, Brasil, a essa vala impiedosa? Será que Palas Atena, as setas de
Apolo ou a prudência de Odisseu poderiam nos socorrer? Ou seriam as preces perdidas
nos algodoais do Alabama, com o ranger de peitos negros tirando notas de seu suor em forma de oração? A mecânica quântica nos garante que essas ondas estão
aí, sonoramente vivas, como as radiações de fundo, captadas nas ondas curtas, que
nos levam a 13,5 bilhões de anos para o início da nossa viagem. Será que só voltando
lá para consertar a mundana miséria? Não, agora o Charles manda pros meus ouvidos
I Believe in Your Love e aí penso que ainda há esperança no mundo. Apesar daqueles coetanos que não quero citá-los, nem sob tortura. São chorumelas desprezíveis, bom é dar um chá de esquecimento pra essa gente. Vida longa ao Blue e bluseiros!
O mesmo mundo que produz o Feliciano produz o Charles Bradley. É nisso que eu tento acreditar para ter alguma esperança. Pena que os Felicianos façam mais sucesso. Abraço.
Demais!!!! Como eu, ainda, nao sei baixar nada!!! vc bem que podia colocar um cadinho desse elixir no meu ipod?!?!?! Bjs
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Vou fazer um playlist: músicas para não correr. Ou: música para fugir das mesmas músicas. 😉 Beijo.
Pô, o blog já é incrível pelos textos, sempre muitíssimo bem construídos, agora também vem cheio de referências musicais. Muito bom! Charles Bradley já é figura cativa no som. Faz assim, o próximo texto poderia ser “dicas de músicas que você não pode morrer antes de ouvir”.
Rapaz, é muita responsabilidade escrever sobre isso. Vou jogando uma coisa que eu gosto de ouvir aqui e ali. Aos poucos. Abraço.
Massa Kassu.
Também sou adepto da “musicoterapia”. Hoje mesmo já tomei minha dose. Vinha meio cabisbaixo para enfrentar uma sexta-feira chuvosa e preguiçosa. Mas, chegando no trabalho, recebi essa pedrada nos peitos.
Mudou tudo!!!
Abraço.
Essa versão é matadora. Vale ver toda a apresentação da noite. Teve uma homenagem ao Buddy Guy, também. Com um belo discurso do Morgan Freeman.
Além do ótimo texto (como sempre), valeu meu amigo por ajudar a reencontrar o nome de Charles Bradley. Havia lido uma reportagem sobre, mas depois “perdi” seu paradeiro na fraca memória. Mas que tem Kassu, não morre sem som. Abs saudosos Apostolo
Marquinhos,
procure pelo Lee Fields, também. Da mesma safra de bons cantores desconhecidos. E pela Sharon Jones. Tem muita gente boa perdida por aí. Grande abraço, meu amigo.
Essa mistura de coração, confessionário, música e propaganda tá boa demais no seu blog.
Obrigado, Kassu.
Valeu pela mensagem. Aqui é uma zona de escape. É um pouco dessa mistura que você falou. Que bom que você tem essa visão sobre o blog. Fico feliz. Abraço.
Agradeço, primeiro, pela dica do Rodriguez e do filme, lá atrás. Mas, antes, por ter podido ler seus textos. Talvez até, antes de antes, por ser publicitário e ter ´conhecido´ você. E, então, ter vindo o resto todo. Parabéns por todos os seus papéis (acima mencionados), fora os outros de que só ouço falar ou tenho a impressão, quase certeza, de que os desempenha bem, como já percorrido em seus textos (pai, filho, amigo, chefe, colega, carioca, flamengo – não, esse não precisa). Ou seja, pelo que você é.