Um amigo meu tem alergia ao camarão. O curioso é que ele tem a sensação de que camarão deve ser gostoso. Só que está impedido de provar. Ele sente o cheiro, mas o sabor pode custar uma glote fechada. Eu tenho algo parecido com storytelling. Eu gosto do que a palavra significa, do cheiro. Agora, basta uma simples menção para que manchas vermelhas apareçam pelo meu corpo inteiro. Há meses, ando sempre com um Polaramine no bolso.
Quando eu comecei em propaganda, a palavra da vez era paradigma. “Queremos uma campanha que quebre os paradigmas” era uma frase proferida em quase toda reunião. Logo, descobri que pessoas que falavam em quebrar paradigmas nunca os quebravam para valer. Era uma frase de efeito, apenas. Que trazia um ar de importância, de sabedoria, de algo difícil de atingir.
Acompanho com curiosidade o crescimento e a valorização da palavra storytelling. Ela também carrega essa aura de importância. De novidade. “Precisamos de uma campanha com storytelling” soa como “precisamos de uma campanha com essa coisa nova que vocês criativos ainda não dominam.” É quando as manchas surgem no meu corpo. Não existe novidade alguma em storytelling. Desde que o mundo é mundo, grandes campanhas sempre carregaram esse tal storytelling naturalmente. A diferença é que nós tínhamos outro nome para ele: ideia boa.
Lembro de uma entrevista com um cineasta (acho que era o Kurosawa), em que o entrevistador analisa a cena de um filme. Ele carrega a cena de significados. Tenta sugerir uma série de valores que essa cena teria. E pergunta o que o cineasta estava pensando quando chegou naquele take. O cineasta responde: tinha um aeroporto ao lado. Era o único take possível. Se eu abrisse demais o plano, o avião apareceria. Cito mais uma outra entrevista de um escritor que eu também não vou lembrar o nome. Vale assim mesmo como metáfora. Mais uma vez, o entrevistador carrega a pergunta de sentidos. De tudo o que pretensamente o autor teria pensado para escrever. E o escritor responde com simplicidade: se eu pensasse nisso tudo, não teria escrito. É o que eu sinto sobre pedidos de campanhas com storytelling. Não dá para chegar em uma ideia, partindo dessa premissa. Storytelling é uma consequência de um grande conceito. “Just do it”, “Impossible is nothing”, “Good things come to those who wait.” Cada frase dessas carrega uma infinidade de histórias.
O problema é que storytelling virou um grande disfarce. Quando vejo surgirem especialistas em storytelling, fico realmente preocupado. Quando vejo cargos com o nome storytelling atrelado, penso no que essas pessoas realmente fazem. Talvez eu seja um dinossauro, um ignorante, um tosco mesmo. Só que na minha cabeça, especialistas em storytelling são pessoas que criaram algum storytelling. Dã. Um exemplo: “Meu primeiro sutiã”. Quer algo mais carregado de storytelling? Logo, Olivetto é um dos maiores especialistas em storytelling.
Em uma busca aleatória, descubro uma série de explicações sobre o tema. “Storytelling ajuda a alavancar vendas e a espalhar ideias”. “Transmedia storytelling é a possibilidade de contar uma história através de diferentes meios.” “Criar uma história envolvente é a chave para o sucesso em um mundo tão conectado.” “Storytelling é um novo conceito de marketing.” “As sete etapas do storytelling: ouvir, aprender, descobrir, explorar, criar, comunicar e encantar.” “Desde os primórdios, os líderes criam histórias para reforçar crenças e manter seu público fidelizado.” Sério. Existe algo realmente novo nessas definições? Estamos falando de revolução ou de obviedades bem-vestidas?
Para ficar bem claro, eu não sou contra o storytelling. Eu sou contra o mau uso da palavra. Contra o excesso. Contra tentar usá-lo como uma técnica só dominada por mestres de Kung-fu-marquetês. Isso me dá uma coceira. É como entrar em um restaurante e o cara servir bife com batata, mas chamar de Steak em Sous Vide deitado em cama de tubérculos. Eu sei que fica mais bonito, que pode até vender mais, só que não é necessariamente melhor.
Às vezes, o linguajar do marketing lembra um pouco o Marcelo, Marmelo, Martelo, personagem encantador da Ruth Rocha. O menino que chamava cachorro de latildo, cadeira de sentador, leite de suco de vaca. Até que a casa do cachorro pega fogo porque seus pais não o entendem. Acho melhor pedir por uma campanha boa e que tenha uma história bem contada. Do que pedir por storytelling. Claro, que como os pais do Marcelo, Marmelo, eu tive que aprender a entender e ressignificar esses pedidos.
Seria mais fácil se eu falasse de um jeito mais complicado. Só que não consigo. Eu gosto de ir direto ao ponto. Não há nada de novo no que storytelling significa. A novidade é que tem gente demais virando especialista em algo que não sabe criar. E isso é realmente perigoso. Tateio meu Polaramine no bolso. Preciso aumentar a dosagem. Sinto que a palavra “Serendipity” vai entrar na moda logo, logo.
Ufa. Que bom que alguém falou nisso!
Tomara que mais pessoas falem sobre o assunto. Os prós e os contras. Todo debate enriquece e separa os oportunistas.
brilhante!
Valeu.
Meu amigo Kassu, muito bom texto, como sempre. Essa cena que vc citou do Kurosawa é do filme “Ran” e que abre o ótimo livro de Sidney Lumet, “Fazendo filmes”. Quanto ao seu comentário pertinente, a verborragia do nada é uma constante. Saudades do amigo que mato lendo seus ótimos textos. abs
Ah, você lembrou da cena. Eu lembro de você me contando essa entrevista. Vou misturando as lembranças com o que estamos vivendo. Escrever, afinal, é uma excelente válvula de escape. Grande abraço, meu amigo.
Por essas e por (muitas) outras, continuo seu grande fã.
Abrs
TL
Toninho,
eu tive sorte de estar cercado dos bons desde o primeiro dia. 🙂
Grande abraço.
Muito bom!
Psit.
Tem storytelling em Los Angeles? Abração.
Da lhe Andrè….muito bom….e assim è em outras àreas…lider…coach e por ai vai
Ricardo
Com lobby e oportunismo, dá para ir bem longe.
mi dios (começou a frase da redatora publicitária).obrigada andre k assu por escrever algo que eu, mera escrevinhadora, penso todos os dias quando escuto sobre o tal storytelling. achava que era teimosia minha, birra (uma sobrancelha levantada), mas vindo de você, me dá um certo alívio. não estou tão errada. esse tal storytelling não é nenhuma novidade. é o que sempre guiou as melhores propagandas, filmes, as melhores histórias. e me dá “coisas” escutar isso como uma novidade. ou obrigação. contar histórias é o que fazemos (eu sigo no aprendizado), mas desistir jamais. mas elas vêm de grandes conceitos. da essência. da verdade. abraço.
O importante é espremer um pouco mais esse assunto. Só assim vamos encontrar o que realmente vale a pena nele.
Maravilhoso! Parabéns mais uma vez. Na veia. Vou poupá-lo, claro, do uso do seu Polaramine..Você me fez lembrar da luta (era isso, luta) contra cliente que queria dar nome francês a um edifício. Eu digladiava quase literalmente para provar que um dos bairros mais charmosos do mundo tem o nome brazuquíssimo de Ipanema. E isso provava que ele não precisaria de galicismo, anglicismo ou que diabo de ismo fosse para ser charmoso. Fui derrotado, o edifício ganhou o nome que o cliente queria: Bois de Boulogne. Mas, como sempre há um porém, minha previsão foi maligna. E a gozação ganhou as páginas das gafes do ano. Conta-se que alguns milionários moradores não se cansam de dizer que moram no “bois de bomlonge”, numa referência taurina à origem de suas fortunas.Não foi por falta de aviso. O pedido de criação era de um nome chique, “afrancesado”, acompanhado de gestos de quem espremia os dedos, como se dissesse o palavrão gestual da época, “caprichem”!
Os empreendimentos imobiliários inventaram bastante coisa nesse sentido. Eles são pródigos em dar um nome diferente a uma coisa que já existia. Em geral, em inglês. Os new rich pira!
A pessoa quer algo com storytelling, mas se você propõe sair dos 30 segundos, dá tilt. Tem que restartar a reunião, reboot no cérebro geral, e nem assim funciona.
Exato. O George Lois é um mestre nessas definiçôes. Nessas análises. Recomendo a leitura. Dele e do Dave Trott.
acho que tenho a mesma alergia que você, kassu. e só o polaramine não tá dando conta. tive que passar pro corticóide. meu medo é ele não fazer mais efeito quando vier a onda do seredipity. muito medo.
Ken, fico muito feliz de não estar sozinho. E mais feliz de dividir com você essa alergia. Eu sabia que iria apanhar ao escrever isso, mas sabia que algumas pessoas estariam ao lado. O importante é começar a debater o significado real de algumas coisas que estão acontecendo no mercado. Só assim podemos separar oportunismo do trabalho de verdade.
Abraço.
Acho que a sua previsão está certa. Tem saído muito ““Serendipity” aqui…
Sério? Como essas bobagens se espalham rápido.
Por uma rede social capaz de reunir somente blogs assim. Daí pra cima. Abs.
Olha a responsabilidade. Aqui é uma válvula de escape. Um respiro, apenas. Abraço.
Saudade de você que só aumenta depois de ler isso.
Salgueiro, a luta continua.
Saudades.
Abração
Achei seu blog por acidente. E, logo de cara, um ótimo texto. Sinto a mesma alergia desse vestido novo para ideias antigas. Transformam o bom senso em ferramenta para boa parte dos sem bom senso usarem a ferramenta, como se ela fosse funcionar.
Assim como Storytelling, o Design Thinking também fecha a minha glote. Também é uma ferramenta da moda, cheia de cases e evangelizadores. Mas o melhor exemplo do que o Design Thinking pretende ser está no conto de Poe, “A Carta Roubada”, de 1800 e pouco.
Rapaz, eu costumo dizer que nunca foi tão fácil enganar. Só que acredito que as modas passam. Assim espero. Vou olhar esse conto. Abraço.
Kassu, a última vez que te vi foi no festival CCSP, onde você encerrou a sua participação com a pergunta:
“Alguém sabe me dizer: Que porra é Storytelling?”
Você perguntou e se respondeu brilhantemente.
Parabéns pelo ótimo texto.
Obrigado.
Já ouvi serendipity rolando em agência logo quando as pessoas voltaram do sxsw. hahaha
Vai vendo …
Espalha rapidinho. É viral.
o pior é que as universidades incentivam ainda mais essas invencionices. Outro dia vi várias chamadas para um curso de Inovação em Storytelling lá na ESPM, Vai vendo…
Acredito que há bons profissionais na área. E muito o que aprender. Só que como toda moda, os aproveitadores surgem primeiro.
A impressão que tenho é que o mercado de propaganda acredita que Storytelling surgiu de dentro da propaganda e ai está o problema dos “especialistas em storytelling”. Porque realmente existe uma tendência de criar tendências para dizer que o mercado está em movimento.
Storytelling existe desde a época das cavernas e quer saber se algo é mesmo ou não? (como diria um amigo) Você pagaria para ver? Sim, ahm então é uma boa história como no cinema ou em um game, mas enquanto a propaganda achar que faz esquetes engraçados e tem que investir muita grana para que alguém de atenção, a palavra storytelling será uma grande falácia.
Realmente já vi empresas grandes cometerem gafes tremendas ao utilizar esse termo, mas como pouca gente tem a percepção do que é se tornam reis. 😦
Infelizmente é assim. O que o Vampeta definiria como: você finge que sabe de storytelling, eu finjo que acredito.
mto bom porram