Arquivo mensal: setembro 2013

Na Missa de St. Jagger e St. Keith.

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Eu não sou ateu. Nem sigo completamente em uma religião. Fico em cima do muro. Posso até marcar uma posição polêmica em uma mesa de bar pelo prazer de provocar gratuitamente. Só que na dúvida, eu sou daqueles que se benzem antes de entrar no mar. Uma incoerência ambulante. Eu sou o que o Millôr Fernandes definiu em uma frase: “O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.”

Eu creio que a minha mãe está em uma lugar melhor. Por que?  Porque ela acreditava muito nisso. Ela passeou por diversas crenças. Achava que uma proteção a mais só lhe faria bem. Eu costumava brincar que ela tinha um molho de chaves para chegar no céu. Se ela encontrasse o Deus Polinésio, ela adentraria ainda assim. Acontece que nos últimos anos, a fé da minha mãe ficou mais fervorosa do que nunca. E essencialmente católica. Todas as chaves viraram uma. Essa única chave, a crença dela, é o que me faz pender para um lado do muro.

No dia 13 de julho, foi aniversário dela. Eu estava de férias. Poderia ter ido a uma igreja e rezado. Poderia ter feito uma oração logo cedo, na beira da cama. O destino trilhou algo diferente para uma homenagem. Já escrevi sobre isso aqui. Minha mãe foi uma das maiores assessoras de imprensa desse país. Ela praticamente solidificou essa profissão, quando o nome era outro: divulgadora. Desde que me entendo por gente, ela trabalhou com cultura. Bastidores de palco foram o meu esconderijo. Coxias de teatro, o meu berço. Portas de evento, a minha sala de espera. Um show do Rolling Stones no Hyde Park, no dia 13 de julho, não poderia ser uma coincidência. Era uma missa a ser realizada.

Se me perguntarem quando me sinto próximo a Deus, eu diria: com a música. É o meu mantra, minha reza, meu altar. Tenho a mais profunda fé no conforto que as notas certas podem trazer. Gosto de imaginar um Deus com a voz do Marvin Gaye. Cercado dos arcanjos Hendrix, Stevie Ray Vaughan e Freddie King. Uma heresia, alguns dirão. É a minha visão de paraíso, respondo. Esse é o meu jeito de exercer a fé. De crer na existência de algo superior.  Caminhar para o show dos Stones foi, portanto, como ir ao encontro da minha mãe. Ela era feita de música.

O destino queria mais. Minha pequena Ju nunca tinha ido a um grande show. O que era missa virou também um batizado. Um novo rito de passagem. Pisamos juntos no gramado do Hyde Park. Olhamos em volta. Eram muitos os fiéis. O inusitado sol de 36 graus em Londres parecia confirmar que o Rio de Janeiro, que minha mãe tanto gostava, havia mudado de lugar. Os gritos e aplausos são o nosso sino. A missa vai começar.

Mick Jagger nos conduz com o cântico “Start me up”. O fato de Keith Richards ainda estar vivo é um milagre. Tudo conspira para que a minha fé fique fortalecida. Naquele espaço de tempo, eu olhava o passado e silenciosamente dizia mais um adeus. A Ju olhava para o futuro e dizia oi. Eu pensava no que fui, ela no que seria. Eu caminhava pela nostalgia, ela saltitava no presente. Eu reconstruía as lembranças, ela guardava os momentos para relembrar um dia. Eu estava partido, ela me reintegrava por inteiro. Era, sem dúvida, uma missa de renovação.

Um fiel observa a nossa cena. Percebe que há algo especial. E pede para registrar. Estamos todos unidos em uma grande celebração. Todos cantam juntos. Há pessoas que choram durante as canções-orações. O clima é de comoção, de paixão, de fervor. Do mesmo jeito que existe o mendigo que invade a igreja, aqui os loucos rolam pelo chão. Trôpegos, realizados, felizes. A música é uma religião que aceita a todos. As portas da Igreja dos Stones estão abertas.

Percebo que o fim se aproxima. Começamos a nos afastar do altar. O som vai diminuindo, a emoção não. “You can’t always get what you want” soa como um salmo. Eu sei que eles estão preparando “Satisfaction” para o ato final. Ouço os acordes. A massa levanta as mãos para o céu e clama por uma benção. Cada nota é uma hóstia distribuída. Estamos todos perdoados.

Volto da missa e compreendo o sentido de ciclo. Penso que ainda preciso batizar a pequena Clara. Falta achar uma igreja adequada. Falo baixinho comigo mesmo: eu rezei por você, mãe. Ao meu modo, mas rezei. E me benzo com uma cópia da chave dela nas mãos.

Do que eu falo quando eu falo de natação.

DCIM100GOPRO

Eu nado quase todos os dias na hora do almoço. Quando me perguntam o porquê, digo que é para não ficar maluco. Uma frase de efeito que costuma funcionar no elevador. Só que ela tem um tanto de verdade. Nadar é um ponto de equilíbrio. Sempre me assustou o orgulho que os criativos têm das suas mazelas. Essa competição de “eu me ferrei mais do que você”, “eu virei mais noites”, “eu trabalhei mais fins de semana”. Uma disputa de cicatrizes que não leva a lugar algum. Que nos envelhece, apenas. Nadar é, portanto, uma quebra no dia. Não é sobre lazer. É sobre um outro foco. Sobre reservar um espaço na agenda para algo que muito me importa: eu mesmo.

Todo mundo conhece o roteiro de um almoço com amigos do trabalho, não? De entrada, são as reclamações do dia, depois temos as agruras do job na mesa. Para harmonizar a conversa, fala-se mal do chefe, do cliente, do mercado. E pronto, voltamos felizes para a mesa e podemos coletar material para o dia seguinte. Pode soar um exagero, mas repare como os assuntos nos almoços são cíclicos. Como as pessoas não desligam. Nadar é ter uma hora no dia sem falar de trabalho.

Em uma brilhante aula de psicologia na Berlin School, o professor Robert Weisz disse que o papel de um líder criativo é espalhar boa energia para a sua equipe. A prática no Brasil mostra o contrário, mas deixo essa análise de lado. Minha questão imediata: se eu espalho boa energia, como eu recarrego a minha bateria? Se estresse é déficit de energia, como regular? O encantador Robert foi direto. Você, muitas vezes, terá que procurar por essa energia fora do trabalho. Porque ao virar um diretor de criação, você tem que lidar com essa demanda sem esperar nada em troca. Eu nado para liberar as tensões, controlar a raiva, ter outros assuntos.  Para reencontrar a essência perdida na pressão do dia a dia. É uma terapia em que você executa os dois papéis: terapeuta e paciente. “We are the person that we are but also the person that we were”, concluiu Robert Weisz.

Cada vez mais, as decisões de trabalho são tomadas em grupo. Os processos hoje envolvem muito mais pessoas do que antigamente. Apresentações são divididas em etapas. Não raro, temos que contar a mesma ideia dezenas de vezes. Dentro e fora da agência. Vivemos em um corredor polonês em que muitos opinam e poucos decidem. A certa altura, fica difícil saber quem está fazendo o quê. As funções se perdem. E, como nos tempos da escola, há sempre alguém que só faz a capa do trabalho. Então, nadar é voltar a ter autonomia.

Quase tudo o que acontece dentro de uma piscina é de sua responsabilidade. O seu tempo piorou? Não adianta culpar o colega da raia ao lado. Você e o seu treinador decidem o ritmo, o ciclo das braçadas, o planejamento da prova. No momento em que você mergulha, não dá para dividir a tarefa. Não dá para compartilhar as decisões. Mesmo no revezamento, as funções estão absolutamente estabelecidas. Nadar é reconhecer a sua individualidade. Admitir as suas fraquezas. E valorizar os pontos fortes. Natação é, também, sobre reequilibrar as conquistas. Quando 10 Leões em Cannes parecem pouco, é bom ter uma atividade em que 10 centésimos parecem muito.

Para alguns, nadar esvazia a mente. Eu nado para reocupar. Para encontrar outro tema durante o dia. E convenhamos, nada como alinhar algo que seja apenas o ombro. Na piscina, são raros os que sabem com o que eu trabalho. Só interessa o nado, a técnica, o estilo e, sim, a competição. Parece contraditório sair de um ambiente competitivo para mergulhar em um outro. Há uma razão. Dentro de uma piscina, não há privilégios. A cada treino, o grupo todo tem uma média de 10 tiros. De estilos diferentes. De metragens distintas. Você vai perder uns tantos, tenha certeza. Nado em um exercício diário de humildade. Que me relembra a importância de treinar. De fazer muito para chegar a um resultado. Não há dom. Há disciplina.

Há alguns anos, tive um professor com o qual o treino não rendia. Meus tempos chegavam num patamar e ali ficavam. Demorei a entender a causa. Comecei a prestar mais atenção nas aulas. Logo, percebi que ele pedia coisas que não faziam muito sentido. Série de borboleta com palmar, por exemplo. Algo que só destrói os seus ombros. A sequência de treinos não tinha uma lógica. Ele pedia, eu executava. Até que um dia, ele nadou. E tudo ficou claro. Ele não nadava bem. Pedia séries sem noção porque não sabia quanto elas doíam.

Logo depois, veio um sujeito que parece o Biff do “De Volta para o Futuro”. Está sempre prestes a executar um bullying. Ele grita, provoca, tira onda. Não, não é um ditador. É um tipo engraçado que nada muito. Ele só pede o que é capaz de ser executado. Todos que nadam com ele baixaram os tempos. Ao seu jeito, ele sabe tirar o melhor da equipe. O ambiente fica divertido mesmo com tanto sofrimento. Já fiz séries de quase vomitar. E saí tranquilo da piscina. Costumo perguntar para ele, em uma sensação de quase-morte: Márcio, o que eu estou fazendo aqui? E dou uma risada no fim da frase. Nadar com ele é entender que uma equipe entrega mais quando está feliz. E que eles podem sair doloridos e realizados da piscina. Desde que o seu comando faça sentido para eles. E que os respeite individualmente.

No livro do qual roubo o título desse artigo, o autor Haruki Murakami revela uma interessante frase que rodou pelas redes sociais: a dor é inevitável. Sofrer é opcional. Vale para a piscina, para o mar, para o trabalho. Nadar é, por fim, mergulhar em si mesmo para tentar sair uma pessoa melhor.

Para os professores : Ademir Paulino e Wanderley Santos. E, óbvio, para o que mais me atura: Márcio Ramos.