Eu não sou ateu. Nem sigo completamente em uma religião. Fico em cima do muro. Posso até marcar uma posição polêmica em uma mesa de bar pelo prazer de provocar gratuitamente. Só que na dúvida, eu sou daqueles que se benzem antes de entrar no mar. Uma incoerência ambulante. Eu sou o que o Millôr Fernandes definiu em uma frase: “O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.”
Eu creio que a minha mãe está em uma lugar melhor. Por que? Porque ela acreditava muito nisso. Ela passeou por diversas crenças. Achava que uma proteção a mais só lhe faria bem. Eu costumava brincar que ela tinha um molho de chaves para chegar no céu. Se ela encontrasse o Deus Polinésio, ela adentraria ainda assim. Acontece que nos últimos anos, a fé da minha mãe ficou mais fervorosa do que nunca. E essencialmente católica. Todas as chaves viraram uma. Essa única chave, a crença dela, é o que me faz pender para um lado do muro.
No dia 13 de julho, foi aniversário dela. Eu estava de férias. Poderia ter ido a uma igreja e rezado. Poderia ter feito uma oração logo cedo, na beira da cama. O destino trilhou algo diferente para uma homenagem. Já escrevi sobre isso aqui. Minha mãe foi uma das maiores assessoras de imprensa desse país. Ela praticamente solidificou essa profissão, quando o nome era outro: divulgadora. Desde que me entendo por gente, ela trabalhou com cultura. Bastidores de palco foram o meu esconderijo. Coxias de teatro, o meu berço. Portas de evento, a minha sala de espera. Um show do Rolling Stones no Hyde Park, no dia 13 de julho, não poderia ser uma coincidência. Era uma missa a ser realizada.
Se me perguntarem quando me sinto próximo a Deus, eu diria: com a música. É o meu mantra, minha reza, meu altar. Tenho a mais profunda fé no conforto que as notas certas podem trazer. Gosto de imaginar um Deus com a voz do Marvin Gaye. Cercado dos arcanjos Hendrix, Stevie Ray Vaughan e Freddie King. Uma heresia, alguns dirão. É a minha visão de paraíso, respondo. Esse é o meu jeito de exercer a fé. De crer na existência de algo superior. Caminhar para o show dos Stones foi, portanto, como ir ao encontro da minha mãe. Ela era feita de música.
O destino queria mais. Minha pequena Ju nunca tinha ido a um grande show. O que era missa virou também um batizado. Um novo rito de passagem. Pisamos juntos no gramado do Hyde Park. Olhamos em volta. Eram muitos os fiéis. O inusitado sol de 36 graus em Londres parecia confirmar que o Rio de Janeiro, que minha mãe tanto gostava, havia mudado de lugar. Os gritos e aplausos são o nosso sino. A missa vai começar.
Mick Jagger nos conduz com o cântico “Start me up”. O fato de Keith Richards ainda estar vivo é um milagre. Tudo conspira para que a minha fé fique fortalecida. Naquele espaço de tempo, eu olhava o passado e silenciosamente dizia mais um adeus. A Ju olhava para o futuro e dizia oi. Eu pensava no que fui, ela no que seria. Eu caminhava pela nostalgia, ela saltitava no presente. Eu reconstruía as lembranças, ela guardava os momentos para relembrar um dia. Eu estava partido, ela me reintegrava por inteiro. Era, sem dúvida, uma missa de renovação.
Um fiel observa a nossa cena. Percebe que há algo especial. E pede para registrar. Estamos todos unidos em uma grande celebração. Todos cantam juntos. Há pessoas que choram durante as canções-orações. O clima é de comoção, de paixão, de fervor. Do mesmo jeito que existe o mendigo que invade a igreja, aqui os loucos rolam pelo chão. Trôpegos, realizados, felizes. A música é uma religião que aceita a todos. As portas da Igreja dos Stones estão abertas.
Percebo que o fim se aproxima. Começamos a nos afastar do altar. O som vai diminuindo, a emoção não. “You can’t always get what you want” soa como um salmo. Eu sei que eles estão preparando “Satisfaction” para o ato final. Ouço os acordes. A massa levanta as mãos para o céu e clama por uma benção. Cada nota é uma hóstia distribuída. Estamos todos perdoados.
Volto da missa e compreendo o sentido de ciclo. Penso que ainda preciso batizar a pequena Clara. Falta achar uma igreja adequada. Falo baixinho comigo mesmo: eu rezei por você, mãe. Ao meu modo, mas rezei. E me benzo com uma cópia da chave dela nas mãos.