Arquivo mensal: março 2015

2015: não é para varrer os cacos

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A história começa no século XV com um pote de cerâmica quebrado e um shogun chamado Ashikaga Yoshimasa. Transtornado com o infortúnio, o shogun envia a peça para ser consertada na China. Após uma longa espera (imagina o correio da época), a peça retorna com emendas de metal em um acabamento medonho. Insatisfeito com o resultado, Ashikaga pede que alguns artesãos japoneses tentem resgatar a beleza perdida dessa cerâmica. Nascia o Kintsugi ou Kintsukuroi, a arte de restaurar que utiliza uma mistura de laca e pó de ouro, fazendo de um vaso quebrado, um objeto ainda mais valioso. Ao invés de varrer os cacos, o Kintsugi acolhe os danos. É uma tradição que dá um novo significado aos defeitos e aceita as imperfeições dos objetos e, por que não dizer, da vida. E ao fazer isso, o que estava quebrado, renasce com um novo propósito.

2015 é o ano que já nasceu quebrado. A maneira como vamos encarar esse momento é fundamental para o que nos espera lá na frente. A atitude mais irresponsável de todas é tentar varrer os cacos para debaixo do tapete e fingir que está tudo bem. O que, claramente, não é uma opção. Porém, vale uma reflexão: no momento em que as montadoras estão com os pátios cheios, em que o mercado imobiliário empacou, que o setor naval já demitiu mais de 30 mil empregados, imagino que os clientes estejam mais ávidos em aprovar soluções de negócio do que apenas ideias para festivais. Andar por esse último caminho pode, inclusive, soar imaturo. O ano pede para olharmos para outro umbigo.

Uma outra possibilidade é fazer uma cópia de um 2015 que a gente tinha na cabeça. Um ano que antecederia as Olimpíadas, com um mercado efervescente, repleto de oportunidades, com um dólar mais amigo. Pode soar absurdo, mas acontece, viu? Pense nas vezes que você já viu um criativo trabalhar fora do briefing como se os problemas reais fossem algo a ser descartado. Um aviso para quem está nesse módulo: esse ano não vai ter a trilha da Enya, não. Nem aquelas fontes de água feng shui para acalmar a mente. Ou a gente encara os danos ou a realidade há de engolir o campo do imaginário.

Podemos, é claro, jogar todos os pedaços de 2015 no lixo, sem piscar. Basta ficarmos quietos na sala de estar, olhando pela janela e esperar pela meia-noite de 31 de dezembro. Ali, soltaremos fogos e abraçaremos 2016 como quem acaba de encontrar a solução para todos os problemas. É a tática “faça cara de paisagem”.

O shogun Ashikaga Yoshimasa não pensaria duas vezes antes de mandar 2015 para os artesãos. Cada caquinho desse ano seria retrabalhado de um jeito que criasse uma nova peça com emendas feitas em pequenos fios de ouro. O Kintsugi ensina a olhar para 2015 aceitando o fato dele já estar quebrado. Não há tempo para lamúrias, nem para ficar olhando os pedaços no chão. A nossa única saída é reconstruir e rápido. E pensando que ainda que demore, a peça resultante pode ser mais valiosa.

Esse ano começa a ser refeito na admissão que a inércia não é uma alternativa. É hora de colocar em prática todos os clichês tão falados: pensar fora da caixa, buscar novas fórmulas, quebrar paradigmas. Há uma lenda que a crise não bate nas agências do mesmo jeito que bate nos clientes. Se você é cliente e pensa assim, desafie a sua agência a pensar o futuro do seu negócio. Se você é agência, antecipe-se ao cliente.

O ano de 2015 está no chão. Pegar uma vassoura ou uma mistura de laca diz tudo o que você espera dele. Eu não vou revelar a minha escolha. Por isso, com as mãos carregadas de resquícios de pó de ouro, prefiro encerrar o texto por aqui.

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Comodismo também é uma forma de violência

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Começo sem rodeios, de supetão, como o próprio filme. “Whiplash” é um dos mais belos retratos já feitos sobre comando e obediência cega. Agora, estico a mão e alcanço um texto do João Pereira Coutinho que ainda ecoa como os gritos do professor Fletcher. A servidão voluntária é o nome do artigo. Por último, salto para a Experiência de Milgram realizada nos anos 60, em que pessoas comuns seguem ordens de uma suposta autoridade com resultados assustadores. Essas peças serão minha munição. Falamos muito sobre os tiranos e pouco sobre o nosso comodismo. Talvez porque seja a parte que doa mais.

Damien Chazelle, diretor e roteirista de “Whiplash”, buscou no seu passado de músico o tema para expurgar fantasmas. Diz ele: “eu tive um professor muito duro. Eu me lembro de sentir medo na maioria do tempo. E a música parou de ser divertida para mim e passou a dar medo, ansiedade e estresse.” Nessa frase, troque professor por chefe e música por trabalho e o cenário não muda muito.

Há muitos jovens bateristas por aí que também trocam a vida pessoal por “sucesso” profissional. Coloco entre aspas, porque essa medida é sempre questionável. Prêmios? Mais do que o coleguinha ao lado? Enfim, na ânsia de agradarem ao comando, esses talentos abandonam tudo em que acreditam e seguem em solos intermináveis madrugada adentro. Obedecer às ordens do professor Fletcher pode até ter feito de Andrew um baterista melhor. Por outro lado, fez dele uma pessoa pior. O preço do comodismo é alto e o débito surge disfarçadamente. Sem perceber, você vira aquilo que mais abomina.

“Não é preciso lutar contra o tirano para terminar com o abuso; basta que um povo inteiro não colabore mais com a sua própria escravidão.” João Pereira Coutinho vai até o século 16 e resgata o livro “Discurso sobre a Servidão Voluntária” de Étienne de La Boétie. É impressionante como continua atual. La Boétie já indagava sobre a natureza servil de quem se sujeita aos desejos e caprichos de um só homem.

Não me espanto com ideias imbecis. Nem com pedidos estúpidos. O que me espanta são as pessoas que tomam essas ideias como verdade absoluta sem questionar. Ou que acatam qualquer ordem. Essa massa calada é que perpetua a tirania, erguendo nos seus ombros as más condutas de seus chefes.

Andarei na superfície da Experiência de Milgram realizada pelo psicólogo Stanley Milgram. Ele resolveu testar como pessoas comuns foram capazes de ter contribuído para os horrores do nazismo. Para isso, selecionou 40 voluntários e lhes deu o papel de professor. Eles tinham que fazer perguntas a um aluno (na verdade, atores contratados). Se o aluno errasse, eles podiam dar um choque (que eles não sabiam ser falso). Tudo assistido por um cientista que fazia o papel de líder e pedia por punições mais severas. Os coordenadores do experimento acreditavam que apenas 1% do grupo chegaria à voltagem máxima, de 450 volts. No entanto, 65% puniram os seus alunos sem pestanejar.

O resumo de Milgram, segundo o próprio: “a essência de obediência consiste no fato de que uma pessoa se vê como o instrumento para a realização de desejos de outra pessoa, e eles, portanto, já não se veem como responsáveis ​​pelas suas ações.” Não sou eu, é o outro que me pede para ser assim. E, por isso, não sou exatamente culpado pelos meus atos.

No texto anterior, recebi um comentário que dizia que os macacos jovens esperam que os mais velhos façam alguma coisa. E se calam quando nada acontece. Até que um dia, eles também estarão velhos, terão contas a pagar e o sistema continua. Pois bem. Se o que lhe pediram não faz sentido, questione. Se mesmo assim não faz sentido, desobedeça. Tenha na cabeça a cena do tapa na cara do “Whiplash”. Devolver ou não aquele tapa pode ser um bom indicador do seu nível de comodismo. Ou do que você se sujeita em busca de “sucesso”.