Olimpíadas, hora de voltar para um assunto que me faz bem. O escritor Nick Hornby atrelava a ascensão e a queda do Arsenal aos momentos da sua vida. Segundo ele, tudo estava correlacionado. Se eu fizesse o mesmo com o Flamengo, teria que desenhar uma infância memorável e uma vida adulta sofrida (com picos de felicidade vascaínos e Pet). Por isso, procuro algumas conexões na piscina. Quando estou bem, nado sem pensar e faço os melhores tempos. Quando estou com raiva, o braço entra mais forte, a técnica se perde e canso invariavelmente. Se decepcionado, nado sem objetivo algum. O quadril desce e a superfície é algo a se evitar.
Experimento entrar na piscina e no trabalho como se cada dia fosse um recomeço. Escolho de largada apagar todos números da cabeça. Sejam eles os do 100m livre ou os dos prêmios. Ao zerar o meu relógio, descubro em muitas oportunidades uma sensação inspiradora. A de voltar a comemorar as conquistas, por menores que sejam. Reencontro o prazer dos centésimos no trabalho. Dos detalhes que fazem diferença ao fim do dia, que nos devolvem zerados para casa. É um aprendizado que demanda foco na sua raia. Até porque, quando você olha demais para o lado, pode dar com a testa na parede.
Nesse momento turbulento do mercado, do País, tenho nadado sem pressão, mais leve. O que me faz lembrar dos ex-atletas que treinavam comigo. Todos tinham na cabeça seus recordes dos tempos mais jovens. Alguns conseguiam lidar com a ideia de aquele número mágico no cronômetro não seria mais alcançado. Outros, não. Esses nadavam à procura do passado, mesmo sabendo que o certo na natação é manter a cabeça centrada. Por ter começado depois de burro velho, não tenho registro qualquer dos meus tempos. Não nado para buscar o que eu fui, nado para o que serei.
Nadar é também um exercício fundamental sobre o silêncio. Repare na quantidade de pequenos sons que nos rodeiam. O teclar, o vibrar do celular, o aviso de email. Trememos em abstinência pela simples possibilidade de não responder a esses chamados. Mergulho para ouvir menos, busco a desconexão.
Cada treino é um ensinamento sobre os próprios limites e um aprendizado sobre as dores. Respeito mais o meu corpo na piscina do que na agência. Se o ombro apita, corro para os elásticos. Se a lombar reclama, evito nadar peito e borboleta. A ideia é ter esse mesmo grau de alerta para o trabalho e ser capaz de escutar o que um torcicolo pode significar. Muito antes que o corpo comece a nos sabotar aos poucos. E ser capaz de enxergar esses detalhes nas pessoas que me importam. Entender, por exemplo, que aquela perna balançando é muito mais do que uma perna balançando.
Respirar, essa arte esquecida, é outro ponto crucial. Eu acreditava que quanto menos eu respirasse, mais rápido seria. Pode funcionar para os 50m livre. Passa a ser uma tática mortal para as distâncias maiores. A ligação é precisa quando pensamos em processos de trabalho. Já vi amigos perdendo o cabelo, outros com herpes, alguns com crise de ansiedade, pela ânsia vã de serem infalíveis. Por acharem que vão resolver tudo sozinhos. O ser humano falha e essa é uma das belezas que nos separa das máquinas, dos arrogantes. Respiro e valorizo cada segundo de descanso na borda, em casa.
Na piscina, pouco importa quem você é lá fora. De touca e óculos, fica difícil manter a pose. Treino hoje com uma galera que é faixa preta na arte de zoar o próximo. Pode ser milionário, condecorado, bajulado. Se chegar segundos atrás, vai ouvir. E acredite: isso torna todos ali mais humanos, menos intocáveis.
Regresso a esse tema e convido você a encontrar a sua piscina, seja ela qual for. Mergulhe sem medo. Olhe para a sombra no fundo, mas não tente alcançá-la. Deixe que ela há de encontrar um outro alguém que você não vê há tempos. Um você mais inteiro, mais verdadeiro.
Compartilho esse prazer pelas piscinas. Pra mim, é um mergulho interior que, paradoxalmente, me faz sentir em expansão. Admiro as águas. Em câmera lenta, o soco dos campeões olímpicos tem evidenciado um dos seus superpoderes: dividir-se em milhares de gotas para, imediatamente depois, voltar a ser uma. Livre, bela, sapeca. Pura inspiração de vida.
A piscina sempre está a nos esperar. Abraço.
Podes Crawl, Kassu. Contar respirações numa piscina melhorou muito minha vida também. Não sei se já vistes, mas existe um documentário muito bacana e inspirador no SPORTV http://globosatplay.globo.com/sportv/v/3632287/ sobre a história de Diana Nyad, a primeira americana a atravessar a nado de Cuba até os Estados Unidos, um dos trechos mais perigosos do Atlântico. O mais impressionante é que, depois de tentar várias vezes, desde os vinte e poucos anos de idade, ela só vai conseguir aos 64 anos. Falando em boas histórias, conheces bons livros sobre natação para indicar? Um forte abraço e boas braçadas por aí!
Conheço bem essa história dela. É incrível.
Livros sobre natação? Putz, não conheço. O livro que inspirou o primeiro texto sobre natação é do Haruki Murakami, no qual ele relaciona o método criativo dele com as corridas. Do que eu falo quando falo de corridas é o nome. Esse vale buscar. Grande abraço.
André, duas coisas:
Primeiro, parabéns pelo texto, aproveitei e li novamente o primeiro “Do que eu falo quando eu falo de natação”. E lhe digo, me identifiquei muito com suas palavras. Encontrei na capoeira a minha piscina, o ambiente onde falo menos, ouço mais e dou espaço aos sons dos instrumentos na roda e as palavras do Mestre.
Segundo, acompanho você e seus relatos desde que descobri seus textos “por acaso” e desde então sempre reservo algum tempo para revisitar os mais antigos. Você me inspirou a escrever, ao ponto de criar alguns textos e gostaria de envia-los a você, se puder, ficarei muito bastante agradecido.
Siga firme nas braçadas, abs.
Tiago, bom saber que o que eu escrevo aqui do meu canto conecta com você. Minha mulher teve uma bonita história com a capoeira e consigo visualizar esses detalhes que você menciona. Pode mandar, sim. akassu@gmail.com . Não prometo uma pronta resposta, mas prometo uma resposta.
Grande abraço
Kassu,
Estou começando no meio publicitário agora e ler seus textos me fazem ter uma percepção muito mais bela do mundo que estou mergulhando de cabeça. Toda semana leio pelo menos alguns de seus artigos e eles me fazem incrivelmente bem. Muito obrigada por isso! Você é inspiração!
Grande abraço,