Arquivo mensal: maio 2021

Em duas semanas, a gente volta.

Marcos Medeiros

Em duas semanas, a gente volta. Não precisa tirar nada da mesa. Talvez seja rápido, uma precaução necessária. Nesse tempo, vamos aproveitar para testar novas formas de trabalhar. As aulas presenciais pararam, né? Um tempo a mais com os filhos em casa vai fazer bem a todos. Sabe aquela coisa de cozinhar juntos? É a oportunidade que nos faltava para isso. Almoçar e jantar reunidos, discutindo o que aconteceu no dia. Falaram que temos que lavar todas as embalagens do mercado. É bom tirar a roupa antes de entrar em casa. Não precisa ser no corredor da área comum, não, mas convém deixar os calçados para fora. Ah, por falar em sapatos, vai ser bom ficar 15 dias de chinelo. Temos que comprar máscaras e álcool em gel. Viu que loucura essa coisa de estocar papel higiênico? É cada uma.

Em um mês, a gente volta. Não deve passar disso. Tenta esquecer um pouco o noticiário. Já se adaptou ao Zoom? Cuidado para não mostrar demais a sua casa, hein? Tenho essa paranoia. Escuta, alguém ainda usa Skype? Por via das dúvidas, melhor baixar de novo. Cada reunião pede um aplicativo, cada aula da escola das filhas pede outro. Eu estoquei aplicativos. Periga eu ter uma versão do ICQ, até. Os almoços têm sido bons momentos para conversar, mas pensar no cardápio e cozinhar não está sendo fácil como eu pensava. Acabou o álcool em gel na farmácia. Você ainda tem algum? Tem gente dizendo que é uma gripezinha, que só os idosos vão morrer. Acho melhor nos prepararmos para o pior e esperar o melhor. É do Cortella essa frase? Tem certeza? Não é daquelas frases que atribuem a uma pessoa e nunca é daquela pessoa? Gosto desse pensamento. Tomara que seja do Cortella. Gosto dele, também. Me peguei rindo ao lavar as frutas que chegaram na entrega. É uma tarefa estranha. Você tem acompanhado as notícias da Itália? Sei que falei para você não acompanhar o noticiário, mas estou com medo.

Em três meses, a gente volta. Acho melhor pensar assim. Será que vai ter Olimpíada? Fiquei pensando nos atletas que se prepararam para esse momento. Para alguns, esse ano era crucial. Tomara que tenha. Você sabia que mais da metade dos atletas só vai para a Olimpíada uma vez? Não sei de onde veio essa estatística, não. Pareceu real. Agora, é ocupar a cabeça com cursos, com filmes, com entretenimento. Se fosse nos anos 1980, seria mais difícil achar o que fazer. Um amigo vai aprender um instrumento. Outro está fazendo pão. Não sei como dizer para as minhas filhas que isso vai até o fim do ano. Penso em três meses, agora. Tô sendo exagerado? Nunca mais usei uma calça jeans, estou apaixonado pela air fryer. Ah, música alta ajuda na faxina. Penso nas crianças que deveriam estar lambendo o corrimão, comendo terra do parquinho, tomando a vitamina “S”. Ouvi dizer que é bom tomar vitamina D, viu? Porque não estamos pegando mais sol como antes. Vários restaurantes fecharam. Parei de olhar para o mundo porque tem me dado agonia. Nova York pareceu aquela do filme do Will Smith. Qual o nome do filme mesmo? Aquele dos zumbis, caramba. Deixa para lá. Vou fazer um misto para o jantar. Acabaram as ideias de cardápio.

No fim do ano, a gente volta. Não, não deve ter festa da firma. Mas deve ter Natal em família, ao menos isso. Os números estão caindo, o cansaço está aumentando, ninguém aguenta mais isso. Na China, parece que a vida voltou ao normal. Já tem vacina quase aprovada. Com vacina, a gente volta. O pavor são os negacionistas, né? Mas prometi ser otimista e não vou falar disso. Tentei fazer pão. Ficou horroroso. Já vamos para o terceiro litro de álcool em gel em casa. Em compensação, parei de lavar as coisas com a mesma intensidade. As crianças não aguentam mais EAD. Elas querem encontrar os amigos, brigar pelo brinquedo no recreio. Os adolescentes nunca imaginaram ficar tanto tempo com os pais. Não era a hora para isso. Era hora de dar beijo na boca, chegar tarde sem avisar, questionar os comandos, pegar mononucleose. Os adultos também queriam o seu momento de criança. Um colo seria bom. Você está fazendo terapia? Reunião por Zoom é legal, mas cansa, né? Reparei que os atrasos diminuíram. Saudades de abrir pacote de amendoim com a boca.

Em 2021, a gente volta. E volta com tudo. Volta renovado. Estou tentando acreditar nisso. Cancelamos o Natal. Vamos ficar só nós. Não, não tenho tio negacionista na família, não. Cruzes! Vai ter rabanada para alegrar a noite. Rabanada é uma pequena forma de felicidade. Vamos cozinhar menos nesse ano. É sempre um exagero de comida. Paramos de lavar as coisas do mercado. Saiu um estudo que diz que não é isso que nos protege. Máscaras, álcool em gel, distanciamento, sim. Já não sinto mais incômodo atrás da orelha com o elástico da máscara. O fone que uso nas reuniões está se desmanchando lentamente. Talvez eu precise de óculos para perto, excesso de telas. Voltei a ler os jornais porque sempre há a Nova Zelândia como esperança. O Trump perder a eleição ajudou a dar alguma retrospectiva possível para esse ano. Não é medo, agora, é desalento.

Em algum momento, a gente volta. Israel vacinou metade da população. Até o fim de maio, os americanos estarão vacinados. Uma hora chega para todos aqui. Vai demorar, não deveria. As lições bonitas ficaram no primeiro mês da pandemia. Não viu a enfermeira fingindo aplicar vacina em um idoso? Ainda é preciso explicar sobre o uso de máscaras. Os números voltaram a subir. Completou um ano que estamos assim. Todos parecem exaustos. Tem alguma ideia para o jantar? Alguma maneira do tempo acelerar? Cuide-se. Quando chegar o momento, a gente se aglomera comendo terra que nem criança no parquinho das emoções que ficaram contidas.

Uma Austin aonde o SXSW não chega

Austin, Texas, Estados Unidos. Uma cidade que carrega ao seu redor uma nuvem de palavras, tais como tecnologia, vanguarda, inovação, futuro, criatividade, música, blockchain, entretenimento. Aqui, é onde acontece o South by Southwest, mais conhecido pela sigla SXSW. Um festival que, no mundo antes da pandemia, reunia dezenas de milhares de pessoas de diversos países para discutir tendências, apontar direções, lançar novos artistas, debater comportamentos de consumo e outras pautas da nossa sociedade. Até aqui, provavelmente, nenhuma novidade para o leitor do Meio & Mensagem.

Austin, Nova Iguaçu, Brasil. Um bairro que fica próximo à divisa entre os municípios de Nova Iguaçu e Queimados. O nome é uma homenagem ao engenheiro que projetou a linha férrea da região, Charles Ernest Austin. O bairro de Austin é parte de uma região tradicionalmente negligenciada por políticas públicas e com uma nuvem de palavras bem diferentes da sua consagrada homônima. Enchentes, descaso, transporte precário, falta de rede de esgoto. Em matéria publicada no jornal Extra, em novembro de 2020, uma moradora do bairro resume: “Uma rua vira rio. A outra vira lama. A gente precisa urgentemente de asfalto. Mas os candidatos só aparecem aqui de quatro em quatro anosQuando ganham a eleição, somem.”

Austin, Texas, já foi eleita por duas vezes consecutivas como a melhor cidade para se viver nos Estados Unidos. Ostenta também o título de cidade com o maior número per capita de locais com música ao vivo no país. Entretenimento não é um problema. Educação, tampouco. Segundo o U.S. News & World Report’s Ranking, 97% da população de Austin têm o segundo grau completo e 31% têm pós-graduação. A taxa de desemprego fica na faixa de 3%. A cidade tem uma boa concentração de empresas de alta tecnologia e um custo de vida menor quando comparada à região do Vale do Silício. Ainda assim, o Economic Policy Institute’s Family Budget Calculator indica que o preço para se viver em Austin é de US$ 3.197 por mês, por adulto.

Austin, Nova Iguaçu, tem cinco praças consideradas espaços de recreação públicos. A população reclama da ausência de creches, de saneamento básico, de falta de iluminação e de ter que enfrentar longas caminhadas para chegar a um ponto de ônibus. Em matéria da Agência Brasil, encontra-se uma investigação sobre a ação de milícias no bairro: “Os milicianos passaram a controlar pontos de mototáxi, serviços clandestinos de TV e internet e até mesmo fornecimento de água e cestas básicas.” De acordo com dados do IBGE, o salário médio mensal dos trabalhadores formais é de 2,1 salários-mínimos, e a cidade de Nova Iguaçu ocupa a posição de número 4.435º no ranking educacional brasileiro.

Austin, Texas, teve a sua edição do SXSW realizada virtualmente neste ano. Entre as tendências de tecnologia apresentadas, estão a integração do corpo humano aos sistemas inteligentes, o metaverso e novas formas de interação, o avanço acelerado na criação de personas com aplicação de inteligência artificial.

Austin, Nova Iguaçu, teve uma crise no abastecimento de água no final de 2020. Alguns moradores ficaram duas semanas sem água. Tudo isso no meio de uma pandemia em que a recomendação é lavar as mãos sempre que possível. Não há tendência de mudança para os problemas de sempre, e a discussão agora deve ser em torno do auxílio emergencial. Existe uma única agência bancária nessa Austin.

Não é preciso esmiuçar mais os dados comparativos. Há, entre uma Austin e a outra, um abismo gigantesco. O Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) aponta que a pandemia agravou a desigualdade no acesso à internet no Brasil. Diz a matéria do caderno de Economia do jornal O Globo: “Os dados cruzados pelo instituto mostram que só 29,6% dos filhos de pais que não tiveram qualquer instrução têm acesso à banda larga. Nos lares onde os pais têm curso superior, essa parcela sobe para 89,4%. E mais: 55% dos filhos de pais sem instrução não têm acesso à internet. A fatia cai para 4,9% quando os pais concluem a universidade”. Há um processo de exclusão digital em andamento que é pouco discutido. Falamos como se o EAD, o trabalho remoto ou mesmo o Clubhouse fossem uma realidade para a maioria. Parafraseando o Lucas Schuch, talvez a gente se importe demais com dados do SXSW e de menos com os do IBGE. O mesmo IBGE que deve ter um corte de 90% no orçamento do Censo Demográfico de 2021, e o mercado não pareceu reclamar. Há todos os tipos de dados sobre Nova Iguaçu, no IBGE. E é importante para entendermos, em um nível municipal, as condições em que vive cada um dos brasileiros.

Quando pensamos em TV, deduzimos que ela sempre esteve em todos os lares do Brasil. Em 1970, 95% dos lares nos EUA possuíam TV, enquanto, por aqui, esse número era cerca de 24%. A evolução do Brasil nas décadas seguintes dá boas dicas sobre a relação do brasileiro com o meio; 56% em 1980, 74% em 1990, 87% em 2000 e somente em 2008 o Brasil alcança os mesmos 95% dos EUA. Há uma curva longa de tempo entre as duas Austins, mesmo quando falamos de TV.

Na Austin do Texas, antes da pandemia, podíamos ficar na fila das mais incríveis palestras, aprender, escrever textos sobre o que faríamos assim que voltássemos ao Brasil (que o Ryan Wallman chamou de pico da hipérbole ilusória seguido da sensação de que isso vai dar trabalho demais para ser aplicado) e, é claro, ver e ser vistos. Essa é uma Austin rica em soluções, enquanto a Austin daqui é carente delas.

Rir é um ato de resistência

No rosto, um par de óculos escuros e uma máscara com as cores da Portela. O semblante é aquele que está sempre a nos remeter para o recanto de um Brasil que vale a pena. Ele arregaça a manga da camiseta, a enfermeira se aproxima com a vacina, e ele faz uma careta com a picada. É tudo rápido e previsível como tinha de ser. Eu me emociono. O Zeca Pagodinho vacinado é a preservação de uma felicidade que teima em escapar.

A gente deveria ter um canal que transmitisse apenas as pessoas sendo vacinadas, disse uma arroba, no Twitter, da qual não me recordo o nome. O espaço da memória tem sido utilizado demais para o presente e as coisas se embaralham, me desculpem. Eu deixaria esse canal ligado todos os dias.

Chorei com a primeira enfermeira vacinada e com Caetano, porque gente é para brilhar, não para morrer de fome. Gil vacinado trouxe a paz que ele diz invadir o coração e que, de repente, se enche de paz como o vento de um tufão. Alcione é o morro feito de samba, e Rita Lee, que está viva e cheia de graça, faz um monte de gente feliz. Paulinho da Viola, o príncipe da cultura popular e legítimo representante de uma monarquia que vale a pena respeitar: a musical. Para cada um deles, um misto de felicidade pelos imunizados e um lamento pelos que se foram sem essa chance.

Não entendo o processo de demonização da cultura quando a análise é puramente emocional. Não faz sentido essa pecha que tentam emplacar de que artista é vagabundo, simplesmente não faz. Pela análise racional, entendo a castração desejada, infelizmente. Umberto Eco dizia que nas manifestações culturais o que amedronta é o pensamento crítico, a divergência com os valores tradicionais. O que me dá mais um motivo para continuar a amar a cultura e a lembrar de um professor que me disse que os poetas contam o que aconteceu no lado dos derrotados. Minha amiga Zélia Duncan escreveu um texto de que gosto muito e destaco uma parte:

“Você não precisa de artistas?

Então me devolve os momentos bons. Os versos roubados de nós.

As cores do seu caminho.

Arranca o rádio do seu carro.

Destrói a caixa de som.

Joga fora os instrumentos.

E todos aqueles quadros.

Deixa as paredes em branco.”

Os setores cultural e criativo respondem por 2,64% do PIB do Brasil. Poderia e pode ser muito mais. Em um artigo de Marlova Noleto, publicado no Valor Econômico, o retrato é drástico: “Entre os meses de março e abril de 2020, 41% dos respondentes perderam a totalidade de suas receitas e, entre maio e julho, essa proporção aumentou para 48,8%. A pesquisa mostra que as artes cênicas foram as mais afetadas, com a perda total de receita para 63% dos respondentes. Nesse setor, a maioria dos que atuam na área de circo (77%), em casas de espetáculo (73%) e no teatro (70%) perderam a totalidade de suas receitas entre maio e julho.”

Eu pergunto, então: Quanto da nossa sanidade mental está atrelada à existência de diferentes formas de entretenimento a que temos acesso na pandemia? Músicas na rádio, novelas, séries, livros, filmes, dança (sozinho, que seja), lives? A cultura salva ao nos tirar, por minutos que sejam, da realidade. É um efeito mágico.

Guardo músicas como quem guarda camadas profundas de histórias. Um coral de adolescentes cantando Arnaldo Antunes é uma memória lindíssima, apesar da letra triste. Porque eles, aqueles jovens, cantavam seus anseios de peito aberto:

“Socorro, não estou sentindo nada.
Nem medo, nem calor, nem fogo,
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir.

Socorro, alguma alma, mesmo que penada,
Me empreste suas penas.
Já não sinto amor nem dor,
Já não sinto nada.”

Guardo as canções dos Saltimbancos Trapalhões, do Roberto Carlos, da Marisa Monte e do Luiz Melodia como quem resguarda mananciais protegidos. Eu sei o que cada uma daquelas músicas me lembra, e isso é precioso demais.

Talvez eu não consiga mais escutar Beyoncé sem que a imagem feliz do Paulo Gustavo me arrebate. Era a paixão dele. A homenagem na página dela torna as coisas indissociáveis no meu modo de armazenar. A morte do Paulo foi um baque muito duro, em uma hora em que a gente mais precisava da leveza, do sorriso e da arte dele. Perguntei ao amigo Felipe Simi como um personagem como o Paulo Gustavo transcende todas as barreiras em um país como o nosso. Eis a resposta:  “Nós gays sempre fomos tratados no humor como objeto do riso alheio e majoritariamente de forma discriminatória. Paulo mudou isso. Eu conheci o trabalho dele quando ‘Minha mãe é uma peça’ ainda era mesmo uma peça. E achei genial ele usar o humor como veículo de fácil digestão para apresentar as dores e as delícias de sua sexualidade, na perspectiva da própria mãe. Ali era um homem gay, mas era também a alegoria da Dona Hermínia. E Dona Hermínia é a cara da mãe tradicional brasileira: cheia de sentimentos, cheia de erros e acertos, e também cheia de amor e preocupação pelo filho gay. Paulo Gustavo conseguiu transformar o que antes era objeto em sujeito. Um sujeito familiar, de quem qualquer um se sentia amigo. O Brasil talvez nem tenha percebido, mas nunca riu do Paulo. Nós (sempre) rimos (e choramos) com ele.”

Chorei pelo Paulo como se fosse esse amigo que eu queria perto, pensei na sua mãe e em tantos que precisavam do Paulo não só para sorrir ou para amar, mas também por ele ser um recanto do Brasil onde a gente poderia morar e ser feliz. Penso na partida dele como se o elástico dos absurdos não devesse esticar mais. E relembro uma canção que ouvi a minha filha cantar e que certamente poderia ser sobre ele:

“Não se assuste, pessoa,

Se eu lhe disser que a vida é boa

Enquanto eles se batem, dê um rolê e você vai ouvir

Apenas quem já dizia

Eu não tenho nada

Antes de você ser, eu sou,

Eu sou, eu sou o amor da cabeça aos pés.”

Porque fazer arte, cantar, amar e rir são formas de resistência.