Arquivo mensal: junho 2022

O que está acontecendo?

Há um momento em que começo a me afastar da cidade de São Paulo. Quando as luzes diminuem, dando lugar aos faróis dos automóveis ávidos por chegarem a outro destino. Nesse momento, quando sinto que o silêncio começa a se fazer mais presente, dou lugar a uma voz que tem sido constante na rota entre a cidade de São Paulo e a praia de Camburi. São duas horas e vinte minutos na previsão do aplicativo, tempo suficiente para um episódio do podcast Discoteca Básica e para, em seguida, ouvir o disco que foi destrinchado com sabedoria pela voz do jornalista Ricardo Alexandre. Em uma dessas viagens dentro de uma viagem, uma passagem sobre um dos álbuns mais importantes da história, “What’s Going On” – do Marvin Gaye, ficou anotada na cabeça. Resolvi falar com o Ricardo Alexandre e ouvir um pouco mais sobre o assunto. Dessa aula, sai o texto a seguir.

Entre 1962 e 1971, a gravadora Motown, que se intitulava o som da América jovem, havia colocado nada mais, nada menos do que 240 hits no top 40 das rádios norte-americanas. Um número impressionante, fruto de uma visão revolucionária e fortemente empresarial na concepção de hits ao lado dos seus artistas, quase todos negros, aliada à uma construção de sonoridades particulares que influenciaram a música pop como conhecemos até hoje, de Beatles a Beyoncé, de Bob Marley a Frank Ocean. O trabalho da Motown era quase fabril, com a mentalidade de uma linha de produção, com padrão de qualidade, mas dependente de criar em grande escala. Fazia-se muito e aproveitava-se o que engajava mais em formato de baladas, canções românticas e músicas dançantes. E essa fórmula deu muito certo. Nomes? Diana Ross & The Supremes, Stevie Wonder (um dos deuses do meu Olimpo musical), The Four Tops, The Temptations, The Jackson Five, Martha Reeves and The Vandellas e, é claro, Marvin Gaye. 

Marvin, o personagem principal do texto, a voz que parece uma divindade por si só, entra em conflito com esse jeito de criar da Motown e com a sua própria produção. Não obstante ele tem que lidar com a dor do falecimento precoce da parceira musical Tammi Terrell (de Ain’t no Mountain High Enough), com os relatos do irmão que retornara da Guerra no Vietnã, com a violência policial, com o racismo. Nesse balaio todo, Renaldo “Obie” Benson, dos Four Tops, começa a escrever a canção “What’s Going On” depois de testemunhar a polícia atirar contra estudantes no Parque do Povo, em Berkeley, episódio que ficou conhecido como “Quinta-feira Sangrenta”. A frase, que viria depois a se tornar o título da música, é uma reação imediata aos fatos: o que está acontecendo? Al Cleveland entra no bolo e aumenta o espectro da letra; depois, Marvin Gaye chega para dar aquela temperada final no que viria a ser uma das melhores canções de todos os tempos. E aqui começa toda uma peleja com a Motown.

Nas palavras do Ricardo Alexandre, uma explicação para essa inquietação de Marvin: “A arte joga sempre com o imprevisível, com o suspeito, com o impensável. Ela tenta materializar o que foge das estatísticas.” Mas como provar isso dentro de um contexto em que tudo funcionava tão bem? Bom, quando Barry Gordy, o dono da Motown, ouviu a canção pronta, disse apenas: “É a pior coisa que eu já ouvi na vida”. No outro canto do embate, Marvin Gaye exclamava sobre a estranheza de cantar canções de amor com um mundo explodindo à volta. Próximo round.

O controle de qualidade da Motown reprova a música, Marvin pega o seu boné e diz que só voltaria se a canção fosse lançada. Não era bravata. Fato consumado, a gravadora fica sem canções do seu astro para o Natal daquele ano. Cabe ao produtor Harry Balk o papel de sensato e louco ao mesmo tempo. Ele vai contra Barry Gordy, manda prensar 100 mil cópias do single e lança na marra. Sucesso instantâneo nas paradas, “What’s Going On” começa ali a garantir o seu lugar na história, indo contra todas as boas e pretensamente infalíveis fórmulas da Motown.

Parênteses para um detalhe sobre a importância de respeitar o acaso: se você ouvir a música, vai perceber uma sobreposição de vozes do próprio Marvin Gaye. Parece uma ideia genial, pensada e trabalhada, mas foi um acaso. O cantor tinha o costume de registrar diversos takes de voz para escolher a melhor interpretação. Na hora de ouvir, o engenheiro de som colocou, sem querer, dois canais tocando simultaneamente. Marvin usou essa combinação para dar uma camada a mais de molho na canção. Sugiro que procurem no YouTube por registros do canto de Marvin sem os instrumentos. É uma experiência de outro universo.

Continuo com mais uma frase do Ricardo Alexandre: “Eu acredito na cultura de mercado, na arte de consumo… eu não acho que essa seja uma dimensão inimiga da criatividade…” Segue ele: “Por outro lado, se um departamento comercial de marketing que não respeita e não valoriza o artista rebelde, o artista de confronto, a arte fica dominada pela resposta previsível que se pode quantificar e mensurar pelas pesquisas. Isso leva a uma arte estagnada. Leva a uma indústria que só produz o que o público já disse que quer consumir.”

Para finalizar, pergunto sobre um certo otimismo dele em acreditar que a criatividade sempre rompe as barreiras. Ao que ele respondeu: “Em algum momento, os departamentos de marketing tiveram de admitir que talvez Madonna misturando religião com pistas de dança pudesse agradar, que a Legião Urbana com músicas quilométricas e letras sem refrão pudesse funcionar, que talvez Roberto Carlos romper com a fórmula da Jovem Guarda pudesse ser um sucesso. A história mostrou que a ousadia dá certo.” 

Há um momento em que o carro começa a se afastar de Camburi. É quando penso: o que os bastidores de um disco nos reservam desta vez? Toca o próximo episódio. Longa vida à criatividade, aos artistas rebeldes e aos contadores dessas histórias musicais.  

A falta de um retrato completo

“Um fato observado sob um ponto de vista, te dá uma impressão. Observado sob um outro ponto de vista, te dá uma impressão completamente diferente. Porém, só quando você tem o retrato do fato por inteiro é que é possível entender a totalidade do que ocorreu.” Traduzido aos trancos e barrancos, este é um texto que considero fundamental na história da publicidade. 

As cenas que ilustram esse texto contam três momentos bem distintos. Cada frase acompanha um determinado momento. No começo do comercial, vemos um homem que parece estar fugindo. No outro ponto de vista, vemos esse mesmo homem indo na direção de um senhor que está de costas para ele. O senhor parece perceber a chegada do homem e vira para se proteger. Ele usa a sua pasta de trabalho para se defender daquilo que parece ser um assalto. Até que finalmente, a câmera nos revela a cena por inteiro. O homem correu na direção do senhor porque ele estava caminhando próximo a uma obra. Uma parte do material da obra está sendo içada e o homem percebe que o material vai desabar sobre o senhor. Então, aquilo que sob um ponto de vista parecia ser um homem em fuga, que sob outro ponto de vista parecia ser uma cena de assalto, acaba por revelar que era, na verdade, um ato heróico de salvamento. 

Esse é considerado um dos melhores comerciais de todos os tempos. “Points of View” é o nome da peça, o jornal “The Guardian” era o cliente, a agência era a BMP. Frank Budgen foi o redator dessa pequena maravilha que nos ajuda a refletir sobre o papel do jornalismo, mas também sobre como devemos observar os fatos em um mundo cada vez mais complexo. Onde a verdade é facilmente manipulável. Não bastasse ter criado este comercial, Frank construiu uma carreira brilhante como diretor. Das suas mãos e do seu olhar saíram incontáveis obras atemporais da publicidade. “Tag” de Nike, “Mountain” de Playstation, a corrida de lesmas da cerveja Guinness, a fuga do sofá de Reebok são apenas algumas delas. Recomendo a leitura de textos de algumas pessoas que trabalharam com Frank Budgen: https://davedye.com/2019/08/27/hands-up-whos-heard-of-frank-budgen/

“Points of View” é uma peça de publicidade criada no distante ano de 1986. Se parte da realização pode até soar datada para alguns, não podemos dizer o mesmo da mensagem. 36 anos depois continuamos a observar pontos de vistas distintos serem puxados para os extremos sem que a gente consiga chegar a um retrato completo dos fatos. Fica a sensação de que quase ninguém quer ouvir ou refletir. Todo mundo quer apenas falar. Porque dialogar pode nos levar a uma desconstrução das nossas crenças. Ou das nossas verdades absolutas tão valiosas. 

Em uma palestra pré-pandêmica que tive a oportunidade de assistir, o neurocientista Facundo Manes dissertou sobre o fato do cérebro humano trabalhar de uma forma parecida há mais de 60 mil anos. Detectamos o perigo e, então, temos que tomar uma decisão: fugir para sobreviver ou enfrentar. Na palestra, ele ilustrava essa fala com um exemplo de um vulto de uma cobra. O que é mais importante? Sobreviver na crença do deixa para lá ou chegar pertinho e comprovar que é mesmo uma cobra? Pense em quantos incautos (ó que bicho fofinho) e corajosos morreram até que a gente aprendesse a lidar minimamente com as cobras e seus vultos. Uma curiosidade aqui: a antropóloga Lynne Isbell, no livro “The Fruit, the Tree, and the Serpent: Why We See So Well” traça a teoria que o sistema visual evoluiu nos últimos 60 milhões de anos para detectar os répteis. Saber que o perigo (ou a verdade) existe nos poupou da extinção. 

Hoje, para quase todo assunto há a falta de um retrato completo. Um grupo defende a empada com azeitona como a única alternativa possível. O outro defende a extinção das azeitonas nas empadas, nos pastéis e, se possível, em toda a gastronomia. Discutir como chegar naquele ponto entre o esfarelamento e o derretimento perfeito da empada, ninguém quer.  Estamos lidando com assuntos como quem lida com o coentro ou com a bala de canela. É amor ou porrada. É “gosto de sabão”ou “tempero essencial”; “sabor de desinfetante”ou “você não tem paladar para isso”.  É a “coentrização” das discussões em quase todas as esferas. 

Nessa mesma palestra citada, Facundo Manes falou do conforto que existe em ficarmos abraçados às nossas crenças. Especialmente, quando encontramos um grupo para chamar de nosso. Lembro da avó de um amigo que não acreditava de jeito algum que o homem tinha ido à Lua. E da felicidade que ela tinha em citar os amigos que compartilhavam da mesma opinião e de espinafrar o grupo que não acreditava nela. Não havia dominó que resolvesse aquela cisão. Hoje, inclusive, ficou muito mais fácil achar uma turma toda sua. Um exemplo? Vi uma manchete que dizia: “Por dentro do “Tinder antivax”: o grupo de namoro onde vacinado não entra”. 

Volto ao complexo da “coentrização”. Segundo um estudo da Universidade de Chicago feito por Nicholas Ericksson, o coentro é rico em aldeído, um composto orgânico presente na baunilha, na canela e no sabão. Quem não gosta de coentro ou da bala de canela, pode ter uma sensibilidade ao aldeído nos receptores olfativos do cromossomo 11. Daí, fica realmente impossível gostar. Não é uma percepção de gosto. É genético em alguns dos casos. E isso traz uma nova camada de informação para os times do coentro e da bala de canela. Ou, pelo menos, um retrato mais completo mesmo em um assunto tão banal. Ah, caso não seja genético, tente colocar o coentro no início do cozimento que fica mais suave.

Sol e sós

A janela repleta de adesivos contava uma história do surfe no Brasil sem que a gente soubesse. A maioria das marcas não existe mais. Vou citar algumas e peço para que você faça um exercício de visualização desses nomes junto comigo. Muitas dessas marcas carregavam um arco-íris ou um sol. Era uma época de muitas cores e todas essas cores ficavam espalhadas por janelas de quartos, capas de cadernos, janelas laterais dos carros. K&K, Cristal Graffiti, Pier, Company, Pakalolo, ElectricLight, Op, Fico, Tico, Sundek, Redley, Alternativa, Rato de Praia, Hang Ten, Lightning Bolt, Hang Loose. Na TV, a série Armação Ilimitada rompia com os limites da forma de contar história e nos fazia sonhar com a vida de surfista. Os acordes de Girl Afraid, do The Smiths, anunciavam o programa Realce do imortal Ricardo Bocão, personagem fundamental da história do surfe no Brasil, e do seu companheiro lendário, Antônio Ricardo. Foi lá que eu vi a imagem heroica do surfista Michael Ho dropando Pipeline com o braço quebrado. O pier de Ipanema não existia mais, mas a aura permanecia nas areias. O delegado Elói, que se orgulhava de ter prendido Gilberto Gil pelo simples porte de um baseado, marcava preconceito com o seu bordão: nem todo maconheiro é surfista, mas todo surfista é maconheiro. Pais repetiam esse bordão e maldiziam as tatuagens e as pranchas. Enquanto isso, Caetano cantava sobre o dragão tatuado no braço, o calção e o corpo abertos no espaço. O Havaí seja aqui era o sonho de surfistas e até de não surfistas. E continua sendo até os dias de hoje. Há algo de mágico no universo do surfe, uma corrente silenciosa a nos puxar para o fundo do oceano da imaginação. Entre o imaginário e a vida de um surfista de competição há, porém, um redemoinho brutal. Boa parte dos surfistas profissionais vive entre o sol (com uma rotina que nos parece idílica) e o sentimento de estarem sós. Falo disso mais tarde.

Surfistas amadores costumam fazer grandes deslocamentos de carro apenas para surfar. Ou emendar uma sucessão de transportes urbanos pelo prazer de chegar ao mar. Uma viagem internacional de surfe pode consistir em pegar um avião até a Cidade do México, esperar no aeroporto por algumas horas e embarcar para Huatulco. De Huatulco são mais duas horas e meia de carro até Salina Cruz. E de Salina para os picos, a viagem leva, em média, uns 40 minutos sacolejando. Comparado com um roteiro para a Indonésia ou Austrália, é coisa simples, até. Contando assim, essa volta toda para pegar onda não faz sentido algum. Para quem surfa, entretanto, basta uma primeira onda boa para justificar essa peregrinação e esquecer a dor na lombar, sem o uso de Tandrilax. “Sal faz bem” é o jeito que costumo pontuar o apagar das luzes de cada dia incrível no mar. Ou furto aquela frase que aparece em algumas postagens: a cura para tudo é água salgada: suor, lágrimas e o mar. Os adesivos na janela da minha casa eram uma forma de trazer o mar para perto.

Um levantamento de 2019 feito pelo Instituto Brasileiro de Surfe (Ibrasurfe) constatou que o esporte movimenta R$ 7 bilhões ao ano em pranchas, roupas e acessórios, sendo que 70% do público consumidor é composto por não praticantes. São admiradores que vestem as marcas como quem veste uma praia paradisíaca. Nesse sentido, a roupa de surfe cumpre a mesma função do adesivo na capa do caderno. Ela faz com que você se sinta parte daquele universo, ela ajuda no sonho de parecer estar lá. A indústria do surfe no Brasil tem tudo para crescer ainda mais nos próximos anos. São mais de 50 milhões de pessoas acima de 18 anos que dizem se identificar com o estilo de vida e, pelo menos, três milhões de homens e mulheres surfando pelo Brasil. O crowd só deve engrossar.

Aqui, volto para o surfe profissional e a sua imagem quase perfeita. Um surfista ou uma surfista de competição lidam com percalços incalculáveis. Digo incalculáveis por dois motivos. Porque, inconscientemente, foi criada a sensação de que aquilo ali é o trabalho dos sonhos, que eles não têm problemas, que é só surfar e pegar sol. E porque o custo para correr um circuito e ter alguma chance de entrar na Liga Mundial é proibitivo. Para disputar todas as etapas do QS, o Qualifying Series, eu chutaria algo na faixa de R$ 200 mil reais. Se der tudo muito certo, ainda vêm as etapas CS, a Challenger Series. Medina, Ítalo Ferreira, Tati Weston, Filipe Toledo e mais alguns poucos nomes ganham os olhares das marcas. Mas a realidade é que há uma infinidade de atletas por todo Brasil com pouquíssimo apoio. Mesmo na Liga Mundial, há uma disparidade de investimento. O Jadson André, surfista potiguar, que o diga. A Brazilian Storm, que tanto assombra os gringos, poderia ser muito mais poderosa. Surfistas profissionais sonham com o adesivo no bico de prancha.

Conheci recentemente o surfista Victor Costa. Nascido e criado na Vila de Ponta Negra, Natal. Surfe sólido e bonito, atleta focado, carreira repleta de títulos amadores, uma história de vida daquelas que você abraça no primeiro capítulo. Entre tantas coisas que me chamaram atenção nele, a visão sobre o mundo do surfe de competição e as suas barreiras no Brasil. Com 22 anos, Victor deveria estar com todo suporte possível para correr as etapas do circuito de classificação. Não está. Nem ele, nem tantos amigos e amigas que ele cita elogiando. Victor desenvolveu uma visão sobre o surfe que começa a desenhar uma nova carreira para ele. Ele é obcecado por cada detalhe da movimentação de um surfista. E sabe ajudar a corrigir esses movimentos. Vai ser um técnico brilhante. Mas muito antes disso, é um surfista que dá gosto de ver na água.

Há entre o adesivo na janela e o adesivo no bico de prancha, um imenso espaço a ser preenchido pelas marcas. É preciso fazer com que o consumidor sonhe com o mar, mas é preciso dar suporte para que a nova geração de surfe possa chegar ainda mais forte no circuito. Meninos e meninas repletos de talento não faltam. E eles não deveriam estar sós.

Sabedoria de um cão velho (escrito antes dele partir)

O meu cão deita sob a luz do sol sempre que o sol se faz possível. Ele parece saber o momento certo de caminhar até a varanda e soltar o corpo como quem ouve Caymmi à tarde, na praia, vento no coqueiro imaginário. O suspiro de descanso cruza a casa. O ronco se faz ouvir. De todos nós, ele é o ser mais sábio da quarentena porque vive cada momento como se fosse eterno. Não satisfeito, ele faz questão de exibir uma ausência de pressa e se espreguiça longamente, como quem faz do ato uma lição do professor de “Sociedade dos Poetas Mortos”. Ele é o John Keating do lar, personagem de Robin Williams, a nos relembrar aquela tatuagem dos anos 90: carpe diem. Ele será meu ponto de reflexão.

Nas atuais circunstâncias, eu jamais deveria ter lido “A Peste”, de Albert Camus, mas li porque me foi irresistível. A verdade humana que exala das páginas chega ao presente com uma atualidade premonitória e me leva a refletir sobre a triste capacidade que o ser humano tem de repetir os mesmos erros. Apesar de escrito em 1947, o romance soa como um estudo preciso sobre os dias de hoje. Um dos personagens, em dado momento, diz: “O que é verdade em relação aos males deste mundo é também verdade em relação à peste. Pode servir para engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste.” Não farei grandes ilações, mas basta adicionar um “e daí?” para sabermos de quem o personagem estaria falando por agora.

Volto ao cão da casa, agora com o seu devido nome: Pulga. Um senhor de 13 anos de idade, que tem a coluna cansada e uma audição que capta apenas os sons que lhe importam: o toque do interfone, o barulho da faca a cortar o pão francês, o abrir da porta do quarto, a ração que ressoa no pote. Sua audição seletiva, que lhe dava ares de felino, foi se aprimorando com o passar do tempo. Invejo essa capacidade porque ouço demais – e porque convivo, neste momento, com uma obra cujo um dos maquinários parece uma bruxa a uivar pela manhã. Sinto que, se eu quisesse conversar com ele sobre “A Peste”, só depois de muita insistência, receberia uma resposta neste estilo: “é, as coisas se repetem, sei como é. Corta um pão francês quentinho que eu chego logo mais”. Simplificaria tudo.

Em recente entrevista, o filósofo Mario Sergio Cortella deu mais uma aula. Não é o tipo de coisas que gostamos de ler, porém se faz necessário. “(…) quando se olha a humanidade ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, nos redime. As lições são aprendidas por uma parte, mas há uma outra parte que só quer voltar ao normal”.

Ressalto o Cortella porque, como seres humanos, tendemos a evitar a dor (como a de refletir sobre nós mesmos) e muitas vezes negamos os sinais que vão contra as nossas crenças. Deveríamos caminhar todos para tirar alguma boa lição dessa experiência, mas parece utopia ou sonho bom da quarentena. Em uma metáfora exagerada, penso no terraplanista convicto que estava prestes a fazer um cruzeiro para comprovar sua tese. Um cruzeiro que iria até a beira do mundo usando – veja você – um sistema GPS (pode pesquisar essa notícia na internet). Sem perceber, podemos ser “o terraplanista das nossas crenças” quando não as confrontamos.

O Pulga carrega as certezas que lhe cabem e, mesmo assim, são vãs. Ele anda um pouco esquecido e, por vezes, parece não saber exatamente onde está. Mas há um outro lado dessa vivência: ele quase se afogou na quarentena e não se traumatizou. Por esquecer, ele não remói as coisas. Meia hora após o susto, ele estava feliz porque era hora do jantar e podia tentar a sorte de cadeira em cadeira, na esperança de um naco de carne. Ele vive o presente, não faz grandes desenhos de futuro, esquece o que o machucou no passado. Uma lição um tanto complicada para reles humanos, ele deve pensar.

Anotei também uma frase do sociólogo francês Dominique Wolton, profundo estudioso da comunicação. Disse ele: “Por que nessa pandemia as pessoas foram para a janela cantar e se comunicar com outras pessoas? Porque queremos sempre encontrar alguém, abraçar alguém. É aquilo que defendo há 30 anos: a superioridade da comunicação humana sobre a técnica”. Abraço esse pensamento em um abraço possível nos dias de hoje. O empobrecimento das interações humanas é um dos traços da atualidade. Ganhamos no avanço tecnológico, perdemos na convivência com o outro.

Já o meu cão velho pensa diferente. Ele ganhou mais do que sempre teve. Mencionei a coluna cansada, mas, desde o começo da pandemia, ele parece não sentir mais dor. A movimentação dele pela casa ganhou contornos de um Benjamin Button: um idoso jovem a pedir para jogar o brinquedo, a dar pequenas corridas, a fugir da hora de escovar. Por estarmos todos juntos, ele está infinitamente mais feliz. A todo momento, há um carinho, uma fala, um encontro de corredor. Sumiram as dores, melhorou o humor. Bastou mais interação.

Outro detalhe que gosto muito nele (e nos cães em geral) é a falta de pudor na hora de mostrar que sente saudades, que ama uma pessoa. Das saídas de casa, todo retorno tem a trilha sonora de um uivo quase rosnado que ele faz. Esse som estranho, de um cão que não sabe latir, é conhecido por todos que ele ama. Fosse um humano, o Pulga estaria a cantar na janela com voz esganiçada ou a abraçar cada um em casa, sabendo que é melhor pecar pelo excesso do que pela ausência de carinho.


Enquanto escrevo, ele está deitado embaixo da mesa. Ele soltou um suspiro que é o som do seu corpo relaxando. Há nesse suspiro muito mais do que sou capaz de traduzir. Hoje fez sol, o vento bate no coqueiro imaginário e olho para ele como quem mira um sábio. Porque mal sabe ele que tudo sabe.

Pequena ode aos quietos

Em um processo de seleção, marquei uma conversa com um redator. Nas palavras da pessoa que o indicou, não sobravam dúvidas: “É um cara que todo mundo quer estar perto, aquele que a gente procura nos problemas porque sabe que ele vai te ouvir”. Curiosidade nas alturas, fui rumo à videoconferência na esperança de que a tela fosse um mero detalhe entre nós. E assim foi. No meio do papo, verbalizei que ele parecia maduro demais para a idade, como quem carrega uma antiga sabedoria na pequena mochila da vida. A surpresa, no entanto, veio de um questionamento que ele trazia consigo: que talvez fosse quieto demais, que postasse de menos, que não era uma figura que se destacava nas redes sociais, por assim dizer. A conversa se esticou ainda mais, desejei que a gente estivesse num boteco, mas findamos como quem anseia pela segunda dose da vacina para um encontro real. Ele não aceitou a proposta, mas guardei uma admiração grande e, de quebra, fiquei com os seus questionamentos na cabeça. Tomei como meus. Afinal, o que é aparecer de menos quando se tem um bom trabalho?

Não há aqui a intenção de uma comparação entre os personagens, mas me lembrei dessa conversa quando o Charlie Watts faleceu. Da bateria do Charlie pulei para a marcenaria do Paulinho da Viola. E vou tentar fechar esses pontos abertos como quem traça uma pequena ode aos mais quietos.

Por uma dessas bobagens irresistíveis e até inexplicáveis, tendemos a escolher a parte favorita de um conjunto. Outro dia, vi uma postagem que dizia: “Você tem uma boca favorita do fogão, pode revelar.” Eu tenho. É a do canto inferior direito. O mesmo vale para integrantes de bandas. Dos Rolling Stones, o meu Stone de coração é o Keith Richards. Porém, Charlie Watts era – por quilômetros de distância – o mais elegante deles. Talvez o roqueiro mais inesperado e indecifrável em seu jeito sem alardes e no sorriso contido.

Quando pensamos nos Stones, os riffs de guitarra e a performance explosiva de Mick Jagger parecem tomar a frente. Acontece que boa parte do jeito da banda tocar deriva daquela batida quase simplista, enigmática, sem exibicionismo. Na canção “Miss You”, famosa por uma gaita que todos conseguem cantarolar, a bateria de Charlie Watts imprime uma elegância invejável. O mesmo vale para “Start me Up”, em que o baterista preenche os intervalos com a sua batida seca e uma assinatura musical que todo musicista sonha para si. Ele era identificável com poucas notas. Segundo o baterista Charles Gavin, Watts conseguiu um lugar raro:   “Ele alcançou no instrumento algo muito difícil para todos os músicos, que é a lei básica do ‘menos é mais’.” Mesmo olhando para a bateria isoladamente, Charlie Watts era econômico. Por toda a vida, ele usou o mesmo modelo, uma “Gretsch” sequinha, sem grandes arroubos. A batida dele deu à banda um elemento complicado de se copiar. Afinal, quem ousaria ser tão simples? Na minha canção favorita da banda, “Gimme Shelter”, a entrada da bateria é uma coisa linda dentro de tantas coisas bonitas da música.

De Watts pulo para Paulinho da Viola, cuja quietude emana muita sabedoria e cuja elegância – olha ela de novo – nos convida a abraçar os detalhes. Pois, se vivemos em um mundo onde todos falam ao mesmo tempo, é preciso saber apreciar quem se faz ouvir sem estardalhaço. Paulinho é o meu recanto de quase silêncio cantado. Se para alguns artistas há uma certa atração nossa em aumentar o volume para escutar, com ele sinto que a música parece estar sempre em uma frequência possível de se ouvir até no volume um. É como um mantra. Desde o tom da voz até o jeito de tocar, tudo nele me acalma. As letras mais dolorosas, inclusive. “Desilusão, danço eu, dança você, na dança da solidão”. As palavras são escolhidas em um trabalho de marcenaria fina. Uma outra arte que, aliás, ele também domina quietinho.

A música de Paulinho é atemporal como o seu aprumo. Em 1969, cantava palavras que poderiam ser ditas hoje:

“Me perdoe a pressa.

É a alma dos nossos negócios.

Oh! Não tem de quê. Eu também só ando a cem.

Quando é que você telefona?”

Paulinho é um mar calmo de silêncio, em um universo bravio de falas.

Pequena pausa. No episódio “A Era dos Introvertidos”, do podcast Boa Noite Internet, Cris Dias nos leva por um passeio que recomendo ouvir. O mesmo Cris, em 2012, reflete sobre uma matéria que sugeria que introversão era um tipo de chatice: “Será essa mais uma prova de como nossa sociedade acha que ser extrovertido é sempre certo e ser introvertido é sempre errado?”.

Se uma árvore cai em uma floresta e não há ninguém para ouvir, ela faz barulho? Não sei. Mas houve um tempo em que voltar pra floresta e encontrar o tronco no chão era o suficiente. Há uma ansiedade nos dias de hoje de que o fazer não parece bastante. É preciso mostrar o que se fez, é preciso postar, contar, colocar destaque. Há uma pressão para fazer barulho, para comprovar que caiu o tronco.

Se na música observo os que sabem usar a quietude, na vida não entendo quem esquece o poder compositor do silêncio. Vivemos em uma orquestra em que prevalece um desespero para que escutem o instrumento que você está tentando tocar, pois todos os outros estão tocando ao mesmo tempo e a esperança de um solo é ínfima. Nesse mundo, uma pessoa com um trabalho muito bom pode questionar que aparece de menos. Prefiro sugerir outro prisma: em uma indústria em que a criatividade é uma peça importante, não é emblemático que a grande maioria dos posts de autoelogio disfarçado pareçam ser os mesmos? Essa é uma questão que deixo no mar, que não tem cabelos que a gente possa agarrar. E que ele nos leve para caminhos mais quietos e elegantes de se navegar.

PS: Dedicado ao Pulga, o cão que acompanhou a minha família por quase 14 anos com seu silêncio sábio. E à minha sogra que tanto me ensinou e que me entendia no barulho e no sossego.