Arquivo mensal: janeiro 2023

Não se assuste pessoa

Pensei em escrever a respeito da desastrosa estratégia de campanha do Ciro Gomes e das armadilhas que moram no ato de fazer as coisas com certo ressentimento. Desisti. Caminhei pelo lado oposto, então. Depois de ver o Gabigol mudar o comportamento de um estádio inteiro na sequência de um pênalti, pensei em escrever sobre a relação magnética que ele conseguiu construir com a torcida do Flamengo e os mistérios que cercam essa conexão mágica estabelecida. Deixei de lado. Pensei em outros dois temas a respeito de literatura. Um sobre um livro que me causou profundo impacto, o Escute as Feras, da antropóloga francesa Nastassja Martin. Outro sobre a experiência de ler o primeiro livro no Kindle: o poderoso, doloroso e feminino Tudo é Rio, da Carla Madeira. Uma experiência que me fez traçar um longo caminho de tudo que li fisicamente na vida. A começar pelo personagem Tistu, do livro O Menino do Dedo Verde. Achei que o segundo tema tinha mais caldo para um artigo, mas o deixei em uma marinada para uma próxima vez. Refleti se não deveria voltar aos temas mais próximos do mercado de comunicação. Percorri a possibilidade de redigir sobre a falta de memória na propaganda e as ocorrências cada vez mais curtas de ideias similares. A chegada de Elon Musk no Twitter também pareceu um assunto tentador. Afinal, ele tem deixado no ar que não está muito aí para as fake news e tem andado num discurso que soa perigoso, como quem passeia sobre um campo minado sem tomar conhecimento do risco. Se bem que o adjetivo “perigoso” parece uma palavra rasa para o que vem a reboque desse pensamento. Outro tópico: a relação entre propagar fake news e mentir os números nos videocases da vida tende a render um bom tema, mas desisti porque agora tento pautar os textos para um lugar mais agregador. Olhei novamente para a experiência da primeira leitura no Kindle. Escreveria sobre o cheiro dos livros e a praticidade (que demorei a aceitar) na hora de colocar opções de leitura na mochila. Tirei o texto da marinada de 4 dias na geladeira, desenhei o primeiro parágrafo, até que tudo parou de súbito. O tempo cessou quando Gal Costa faleceu. E fui tomado por uma sensação de que não estou muito preparado para a partida de pessoas que criaram melodias que fazem parte  da minha vida, de muitas vidas.

Desde o momento da notícia da partida de Gal, dedico espaços de tempo para contemplar vídeos dela nos palcos. Vejo também depoimentos emocionados de Gil, Caetano e Bethânia. Há uma cena da Gal cantando uma música no show do Djavan. Ela parece muito feliz na plateia. Recolhi esses fragmentos de vídeos, músicas, falas. Assisto a tudo, ora com lágrimas de tristeza – porque soou como uma injustiça do tempo –, ora com lágrimas de alegria – porque me lembro que esse tempo que parece injusto é o mesmo que o Caetano cantou como sendo inventivo e capaz de dar um brilho definido ao espírito. Gal, uma cantora que rompeu barreiras, que deu nome às dunas de Ipanema, que definiu sonoridades tão distintas na maneira de cantar, é um desses espíritos de um brilho definido. Sei que é a segunda vez em sequência que a música domina este recanto, mas não é à toa que o nome deste espaço é Qualquer Coisa. Diz sobre a liberdade de temas (para além do nosso mercado) e um universo plural onde habitam Gal, Gil, Bethânia, os Novos Baianos, Milton, Melodia, Djavan, Boldrin, Clara Nunes e tantas outras magias.

A finitude de alguém que a gente gosta nos faz relembrar da nossa própria finitude. Ecoa do mesmo modo ao pensar na finitude de pessoas que parecem ocupar um grupo desse alguém que se foi. São pensamentos que a gente finge que não existem, mas eles estão por lá, à espreita. No caso de Gal, há um intrínseco emaranhado que se conectou de todas as formas possíveis dentro de mim. E imagino que dentro de muitos outros. É indissociável pensar em Gal e pensar em Bethânia e pensar Gil que me faz pensar em Caetano que me faz pensar em djavanear. Assim como foi impossível assistir ao Milton na turnê A Última Sessão de Música e não sentir o peso e a beleza de admitir publicamente a palavra “última”. Porque pensar na despedida é refletir sobre todos os caminhos percorridos até aqui. No caso de Milton, a emoção brotou na primeira canção tão logo ele cantou “ponta de areia, ponto final”. Porque falar de um ponto final no primeiro verso da primeira música do último show é todo um ciclo de uma vida.

Quando Gal se foi, o Luiz Antônio Simas postou, com a sabedoria de sempre: “De onde tiraram essa ideia estapafúrdia de que ela morreu? Eu, por exemplo, estou escutando Gal cantar agora; como os netos dos netos dos nossos netos escutarão.” Conecto esse saber com outro saber que a Pixar trouxe da cultura mexicana na lindíssima animação Viva – A Vida é uma Festa: ideia de que para uma pessoa continuar a existir no mundo dos mortos é preciso que a gente a cultive na nossa memória. Como disse Bethânia: a saudade vai ficar, eu quero que fique. 

O último disco de vinil que comprei para a minha coleção foi o Fa-tal – Gal a todo vapor. Comprei porque queria manter viva em mim a memória de que a minha mãe falava muito do impacto de estar nesse show por diferentes noites. E, assim, minha mãe continua a existir. Comprei porque no encerramento do ano de uma das minhas filhas, uma das músicas escolhidas foi Dê um Rolê. E havia uma beleza ímpar em adolescentes cantando “não se assuste, pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa” na versão de Gal. E se eles acreditam, se Gal acreditava, eu tendo a acreditar mais nessa ideia. No final, o último artigo do ano não é sobre perda. É sobre o começo do que vem pela frente quando alguém se vai. Que 2023 seja mais amor, da cabeça aos pés.


Salve Jorge

O chiado da cebola dourando na manteiga, o barulho da chuva batendo no asfalto em um dia quente, o apitinho do final do bocejo de um cachorro, o primeiro milho que estoura na pipoqueira, o timbre da guitarra do B.B. King, o som de uma onda quebrando em um dia de ressaca, o tom aveludado da voz da Ella Fitzgerald, o cantar dos passarinhos na primeira luz da manhã, aquele “tsssss” da cerveja sendo aberta na sexta fim do dia, o breve silêncio da torcida no segundo que precede o gol, o som da quietude que reside embaixo de uma árvore frondosa, a lembrança do sinal do recreio, a gaita e qualquer nota saindo da boca do Stevie Wonder, o estalo da agulha encostando no vinil, o saxofone que abre “What’s Going On”, o aviso de “ó o mate” nas praias do Rio, a água quando entra na panela do arroz, o riso quando vira gargalhada na boca de  um bebê, ouvir uma música ao acaso que relembra minhas filhas pequenas, o violão na introdução de “Menina mulher da pele preta”. Tudo isso faz parte do universo de sons que me trazem uma alegria instantânea. Uma alegria que invade sem pedir licença e assenta as coisas como aqueles flocos do globo de neve tocando o solo depois de uma sacolejada. 

De todos esses sons, destaco aqui o impacto espiritual que Jorge Ben Jor traz a cada vez que o escuto. Porque sempre parece haver nele uma revelação, uma camada que antes não compreendia em sua total dimensão e que, então, surge abrindo novos lugares. Foi o que aconteceu quando escutei o terceiro episódio do podcast Projeto Querino, da Rádio Novelo e do jornalista Tiago Rogero, um podcast fundamental para entender a história pouco contada sobre o Brasil e de como chegamos sem mudar muito no lamaçal dos dias de hoje. Contei sobre o episódio para o meu amigo Renan Valadares e ele abriu um outro portal. Um documentário de dez capítulos, em áudio, nomeado “Imbatível ao extremo: assim é Jorge Ben Jor!”. No meu universo musical, Jorge é uma espécie de deus. Faltavam-me, porém, palavras que me explicassem a amplitude da sabedoria que ele carrega. 

Jorge abriu um caminho completamente novo na música brasileira. Sem Jorge, uma boa parte do que ouvimos hoje talvez não existisse. Porque é ele que, desde o seu primeiro sucesso, cria uma dimensão nova em abordar ritmos e sonoridades. Armando Pittigliani, produtor musical do primeiro disco, relata que conheceu Jorge por recomendação de um amigo. A pedido de Armando, o menino tocou violão. Em segundos, Armando diz para ele parar de tocar e pede para trazerem um contrato. Nas palavras dele: “esse cara pode não cantar nada, mas esse violão vai ficar só comigo”. Só que, aí, Jorge cantou. E o que veio? O canto em iorubá: Oh, ariá-raió. Obá, Obá, Obá. Armando diz que se arrepia até hoje com a lembrança. “Mas que nada” foi lançada em 1963 e até hoje é difícil estabelecer uma definição para aquele ritmo. Parece bossa, parece samba, já tem sambalanço, tem batida de candomblé, evoca tambores no violão. Acho emblemático que na capa do disco tenham apagado  o banco onde Jorge estava sentado. E o que fica é a imagem de um homem que flutua com seu violão, como uma entidade que nunca se acomoda.

O professor e crítico cultural Acauam Oliveira diz no episódio do Projeto Querino, denominado “Chove Chuva”: “Essa ideia do Jorge Ben, idealizador de uma mitologia negra idealizada a partir do amor, e não da dor, pensado para fora do que o colonizador fez do nosso povo… É um horizonte de liberdade tão grande, é tão pensado para fora do que o racismo faz de nós, que o cara fez um disco sobre alquimia. Aquele disco é uma das experiências mais radicais em termos de liberdade temática.” O disco mencionado é o “A tábua de esmeralda”, um dos mais importantes da música brasileira. Muitas vezes, guardei comigo a impressão de que Jorge Ben Jor não é levado a sério por uma grande parte das pessoas. Já ouvi que o ritmo é fácil, que é musiquinha de festa, que as letras não fazem sentido. Entendo agora que desmerecer Jorge sob esses argumentos sempre teve uma camada de racismo que tenta dizer que aquela liberdade ali é algo menor. Melhor ficar com a impressão de Gilberto Gil, que, ao ouvir Jorge pela primeira vez, disse aos amigos: “Bom, agora eu acho que não preciso nem pensar mais em ficar fazendo música e coisas deste tipo, basta eu cantar Jorge Ben que já está legal”. Para Gil, Jorge elaborou um afrobrasileirismo tão decantado que gerou todas as novas correntes da música. Em 1975, os dois estiveram juntos em um exercício completo de liberdade criativa no antológico álbum “Gil e Jorge: Oxum, Xangô”. 

Jorge Ben Jor tem uma criatividade inclassificável. É difícil pensar como Jorge, compor como Jorge, compreender Jorge, tocar o violão de Jorge. Ele mesmo, um tímido e avesso às entrevistas, dá poucas pistas sobre os seus processos criativos. Achei um dossiê compilado pelo Marcelo Pinheiro e de lá puxo uma rara fala de Jorge: “(…) Meu trabalho é de raízes, mais para o popular. Quando faço uma canção, faço primeiro para mim, porque eu gosto de música, mas daí eu as testo em crianças. Se elas gostam é porque é boa mesmo. Eu quero é fazer um som que seja universal, mesmo sendo cantado em português”. Ele conseguiu. Discos de vinil do Jorge são desejados em todos os recantos do mundo. 

Há anos atrás, escrevi sobre uma vontade de morar no universo das canções de Jorge e da vontade de encontrar o homem da gravata florida para lhe pedir emprestado o seu relatório de harmonia de coisas belas. Era só um pedaço do que compreendia de Jorge. Ao escutar Acauam Oliveira dizer que Jorge canta perdoando as dores do mundo e que isso é de uma sabedoria ancestral absurda, penso que quando Jorge canta sobre torcer pela paz, pela alegria, pelo amor e pelas coisas úteis que se pode comprar com 10 cruzeiros, ele, tal e qual um ser elevado, torce para além dele, torce por todo um Brasil. Salve, Jorge!