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Um Gigante Gentil

A minha vida tem uma trilha Roberto e Erasmo. Mesmo que eu não quisesse, as canções seriam inevitáveis. Foi na coxia do palco que eu passei um belo pedaço da infância. Já tive um misto de tudo em relação a essas músicas. Ódio, amor, ternura, cansaço, tédio, carinho. Hoje, guardo o aprendizado de ter visto de perto, por tantas vezes, dois grandes homens da música popular brasileira.

Já escrevi sobre o Roberto, sobre o que a TV mal mostra. Muito se fala das suas idiossincrasias, pouco se fala sobre a grandeza de seus pequenos gestos. O Rei é, antes de tudo, um cavalheiro. Um homem que mesmo no altar por tanto tempo, não perdeu o tato com quem lhe colocou lá. Falar sobre o Roberto Carlos é tão magnético que percebo a injustiça que é esquecer o Erasmo nessa trajetória. E aqui serei absolutamente pessoal.

Minha mãe começou a trabalhar com o Roberto quando eu tinha 5 anos de idade. Volto para aquele menino e olho para cima. A figura do Erasmo sempre me foi mais encantadora. Ele tinha uma atitude completamente diferente dos pais dos amiguinhos da escola. Pulseira, jaqueta de couro, jeans, cabelos rebeldes e uma mania de falar “bicho” para tudo. E mais: não se dirigia às crianças na linguagem “tatibitate”. Ele falava como se fossemos um deles. Desconhecia na época, o apelido que tanto lhe define: Gigante Gentil. Para uma criança, gigante era uma bela definição sobre aquele ser que caminhava a passos largos e ego curto. Ele era uma festa de arromba em si só.

Agora, pense nas canções. Pense que houve um momento na música brasileira que era necessário mais do que repetir vogais nos refrãos para ter sucesso. Que as melodias podiam ser mais trabalhadas sem demérito de vendas. Roberto e Erasmo já sofreram todos os tipos de críticas ao longo do tempo. A música continua mais forte e atravessa gerações com a partitura blindada. Ela nos toca de alguma forma. Ouvir Roberto e Erasmo é entrar em contato com uma parte da nossa história. Podemos rejeitar, até. Argumentar que é brega, que relembra a tristeza do Natal, que remete a um tempo que já foi. Em tempos brutos, prefiro me apegar ao romantismo escancarado de “Detalhes”. Que linda canção.

Regresso aos caracóis do Erasmo. Relembro o afago que ele me deu na missa da minha mãe. Para em seguida, bater no seu peito, na altura do coração em mais um gesto típico de sua gentileza e capacidade de entrega. Erasmo tem um silêncio carinhoso. Repasso alguns momentos da infância com o Léo e o Gugu correndo pelos bastidores. O vascaíno e o quase zagueiro rubro-negro. Em comum, a verdadeira adoração pelo pai. Inevitável achar tudo o que ele passou recentemente injusto. Contra a ordem natural da vida. Eis que Erasmo me reserva outra lição com a frase: “meu filho gostaria que eu continuasse tocando”. E assim o fez. Eu buscando os porquês, ele seguindo em frente de peito aberto.

Erasmo volta aos palcos com a certeza de que a sua força está na música. Cercado de uma banda jovem, ele continua a figura menos badalada de uma dupla que tanto nos deu. É mais uma característica que me faz admirá-lo. Compor para Erasmo é como o ato de beber água para nós. É natural e ao mesmo tempo vital. Caminho pela discografia de Roberto para confirmar o que sentia: não haveria Rei sem o amigo de fé, o irmão camarada, o Tremendão.

Hoje, eu olho para o Erasmo com a mesma curiosidade de um menino de 5 anos. Aquela figura continua encantadora. E, agora, mais Gigante. Agradeço a sua música que me toca como uma oração, bato no peito e devolvo o afeto que sempre me deu. Um beijo, Erasmo.

Ivone e Erasmo

Tem do preto e tem do branco

Há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante, você precisava conversar com um bom vendedor em uma excelente loja de discos para saber o que estava acontecendo no mundo da música. Era uma época inglória. A informação não circulava. Até a pornografia era difícil de ser alcançada. Na falta de acesso, qualquer fórum da Ele&Ela já alegrava. Uma Nádia Lippi trazia felicidade. Edições de carnaval eram disputadas a tapa. Hoje, tudo está à mão. A geração criada à base de melancia cortadinha e sem semente, de iogurte grego light e embalada pelo Redtube desconhece a dificuldade.

Se antes um vendedor se fazia necessário, hoje precisamos de um bom fornecedor. O que me leva a uma lenda urbana carioca do traficante do asfalto que codificava as drogas como música. Nesse dialeto antiescuta, cocaína virava Hermeto Pascoal. Maconha era James Brown. O diálogo era mais ou menos assim:

– Aí, tô querendo aquele disco do Hermeto emprestado. Rola?

– Mermão, tu quer o compacto ou o LP todo?

– Manda o compacto para eu sacar o som. Tem James Brown?

– Tem, mas tá mirrado. Amanhã chega a coleção completa.

– Fechou. Escuta: por que Hermeto e não Sivuca?

– Sivuca é de injetar. É outra parada.

O bom fornecedor tem todos os sons na mão em alta qualidade. Separado por pastinhas e alinhado por estilos. Ele não mistura as coisas e conhece bem cada cliente. Em uma sociedade na qual todo mundo faz download, mas não admite, o fornecedor é um intermediário necessário entre a música e a sensação de consciência limpa. É a Lei Bill Clinton de ausência de culpa: eu baixo música, mas não trago.

Recentemente, eu perdi um fornecedor do bom. Por questões de segurança, não posso revelar o nome. Trata-se de um sujeito da mais alta estirpe, todo trabalhado na fofurice e no bom gosto musical. Um conhecedor, fuçador dos blogs gringos, um cara absolutamente generoso. O morro anunciava as drogas com fogos? Meu traficante dava tiros de comemoração pelo iChat. A janelinha piscava e eu sabia que tinha uma parada boa chegando. Lee Fields apareceu assim, de repente. Como quem não quer nada. Alabama Shakes, também. Ben Howard, que tem mais nome de jogador da NBA do que outra coisa, chegou embalado e avaliado. Quando eu viciava em um som, ele mudava para outro. Sabia tratar um cliente esse rapaz.

Um belo dia, ele resolveu partir. Foi para um morro distante. Na ânsia de não decepcionar os clientes, trocou as pastinhas por míseros links do YouTube. Não é a mesma coisa. Não dá a mesma onda. Os clientes fiéis caminham a esmo pelos corredores como mortos vivos da Cracolândia. Sem rumo, sem norte, sem fone. É desolador. Para quem um dia recebeu um Charles Bradley novinho, é difícil ter que controlar os tremores da abstinência com arquivos de baixa qualidade. Até o Arcade Fire novo ficou impossível.

Ninguém tomou a boca e encontrar boa música virou um martírio novamente. Saio batendo nas telas em volta. Vago pelo compartilhamento do iTunes. Até diria que flano, se flanar não fosse um verbo tão hipster. São tempos difíceis. O fornecedor deveria ter como obrigação deixar um sucessor legítimo. Eu até poderia recorrer a outros dois camaradas, mas eles andam tão ferrados de trabalho que não fazem mais download. Que mundo é esse, Senhor? Cadê o mp3 nosso de cada dia?

Lá se vão 4 meses sem um iChat animador. Não me venha com gifs e tumblrs. Não tente me enganar com álbum em stream da Norah Jones com o Billie Joe. Eu quero as minhas músicas da boa. Quero tudo destilado, filtrado e destrinchado. Virei um menino mimado. Este texto é um SOS para este ex-fornecedor desalmado. Tem gente estrebuchando no chão por sua culpa. Comprando gift card pelo eBay. Sabe lá o que é isso? Tenha dó. Dê algum jeito de estancar esse sofrimento ao meu redor. Volte os olhos para o seu rebanho abandonado. Sinto, mas você não me dá alternativa a não ser revelar a sua fraqueza. Para quem tem um produto de fazer inveja ao Walter White, Almeidinha é um nome nada intimidador.

O meu lado Delei.

Quando eu era um pivete de Copacabana, tinha um jogador no Fluminense chamado Delei. Era uma época áurea do trocadilho carioca. Da piada popular. “You talk too much”, canção épica do Run DMC, virou Melô do Taca Tomate. Eram tempos diferentes. Eu estava no meio de uma geração inteira que cantou “tocando de biquíni sem parar” quando o certo era B.B. King. E nesse momento, Delei virou sinônimo de atrasado. Delei=delay, sacou?

De uma certa forma, eu me considero um Delei da música. Eu chego atrasado muitas vezes. Por birra, pirraça ou por ignorância mesmo. Para manter uma opinião polêmica, posso evitar uma determinada banda por anos. Aconteceu algumas vezes. Acredito até que tenho melhorado com a idade. Consigo admitir o erro em intervalos mais curtos. Recentemente, eu tomei um asco do Daft Punk sem nem ouvir o álbum novo. A profusão de “gênio” nas redes sociais era tamanha que, como um menino que recusa cebola sem provar, eu não ouvi. E não gostei. Vociferei contra, aqui e ali. E eis que o caboclo Nile Rodgers me pegou desprevenido. O pé começou a bater no chão, o dedo a tamborilar, senti uma energia estranha. Os tambores do terreiro uniram-se ao verso “I’ll just keep playing back, these fragments of time…”. Cantei para subir.

É uma evolução. Eu evitei os Beatles por anos e anos. Razão? Reafirmar a minha crença de que os Stones eram melhores. Uma bobagem como descobri tempos depois. É uma daquelas discussões infrutíferas. Onde os lados não costumam ceder. Típico assunto que surge em mesa de bar depois de algumas tantas cervejas. Aquela hora em que as pessoas começam a disputar questões existenciais do naipe de: você prefere cachorro ou gato? Frankenstein Jr. ou Johnny Quest? PSOL ou PSB? Scheila Carvalho ou Sheila Mello? Eu disputava e ainda disputo algumas. Quando tomei vergonha na cara e parei de comparar, descobri toda a plenitude dos Beatles. Acabei me sentindo um energúmeno, um jegue-jumbo, uma ameba. Toda a coleção de adjetivos da saudosa quinta série.

Ser um Delei é descobrir o Chico Science depois que ele morreu. Só que tendo que perder um show para isso. É ter que passar uns 2 anos negando a existência do Nirvana para descobrir o que eles significavam em um show na Apoteose. É passar anos sem ouvir bossa-nova, porque não pegava bem gostar dela na galera que eu andava. É ouvir Portishead quando a onda depressiva já tinha passado. É dizer que não gosta de heavy metal e colocar todas as bandas do estilo no mesmo saco. E, por isso, ouvir Black Sabbath com um atraso considerável. É ter como princípio negar tudo que é hype. É não ouvir a banda da semana por desacreditar em bandas da semana. É pau, é pedra, é o fim do caminho da aceitação.

Um verdadeiro Delei não escuta uma banda quando as seguintes frases são proferidas: “você tem que ouvir isso!”. “Você vai rever os seus conceitos quando ouvir isso!”. “O NME diz que você precisa ouvir isso!”. “O mundo está ouvindo isso!”. Por princípio, o Delei-moleque, o Delei-arte nega tudo que venha com exclamações. Nesse momento, as capas de proteção entram em modo on. E pronto: ele não vai ouvir justamente porque indicaram. Eu falo porque fui um mestre nessa arte. No kung fu musical, eu seria o especialista nos movimentos da anta. Da mula. Do empacado.

A idade trouxe um tico de tolerância. Um pouco de nada. O suficiente para me arrepender de algumas tontices. Música é coisa séria. Ainda hoje, tento não ver o iPod dos amigos para não me decepcionar. Fico sentido quando descubro que uma pessoa de que eu gosto ouve sertanejo universitário. Tenho uma certa ânsia quando alguém defende, mesmo que na mesa ao lado, a originalidade do Sambô. Recuso as certezas dos indie-cabelinhos.

Um Delei convive com o vício do pré-julgamento. Ele só aprende a disfarçar ou a dosar. Na dúvida, é melhor colocar um fone e evitar a discussão. Um Delei erra muitas vezes. E acerta outras tantas (obrigado, Sade). É um projeto de polemista.

Eu admito a minha porção Delei. É o meu lado atrasado. Não à toa, tem o nome de um ex-jogador do Fluminense.

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Na Missa de St. Jagger e St. Keith.

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Eu não sou ateu. Nem sigo completamente em uma religião. Fico em cima do muro. Posso até marcar uma posição polêmica em uma mesa de bar pelo prazer de provocar gratuitamente. Só que na dúvida, eu sou daqueles que se benzem antes de entrar no mar. Uma incoerência ambulante. Eu sou o que o Millôr Fernandes definiu em uma frase: “O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.”

Eu creio que a minha mãe está em uma lugar melhor. Por que?  Porque ela acreditava muito nisso. Ela passeou por diversas crenças. Achava que uma proteção a mais só lhe faria bem. Eu costumava brincar que ela tinha um molho de chaves para chegar no céu. Se ela encontrasse o Deus Polinésio, ela adentraria ainda assim. Acontece que nos últimos anos, a fé da minha mãe ficou mais fervorosa do que nunca. E essencialmente católica. Todas as chaves viraram uma. Essa única chave, a crença dela, é o que me faz pender para um lado do muro.

No dia 13 de julho, foi aniversário dela. Eu estava de férias. Poderia ter ido a uma igreja e rezado. Poderia ter feito uma oração logo cedo, na beira da cama. O destino trilhou algo diferente para uma homenagem. Já escrevi sobre isso aqui. Minha mãe foi uma das maiores assessoras de imprensa desse país. Ela praticamente solidificou essa profissão, quando o nome era outro: divulgadora. Desde que me entendo por gente, ela trabalhou com cultura. Bastidores de palco foram o meu esconderijo. Coxias de teatro, o meu berço. Portas de evento, a minha sala de espera. Um show do Rolling Stones no Hyde Park, no dia 13 de julho, não poderia ser uma coincidência. Era uma missa a ser realizada.

Se me perguntarem quando me sinto próximo a Deus, eu diria: com a música. É o meu mantra, minha reza, meu altar. Tenho a mais profunda fé no conforto que as notas certas podem trazer. Gosto de imaginar um Deus com a voz do Marvin Gaye. Cercado dos arcanjos Hendrix, Stevie Ray Vaughan e Freddie King. Uma heresia, alguns dirão. É a minha visão de paraíso, respondo. Esse é o meu jeito de exercer a fé. De crer na existência de algo superior.  Caminhar para o show dos Stones foi, portanto, como ir ao encontro da minha mãe. Ela era feita de música.

O destino queria mais. Minha pequena Ju nunca tinha ido a um grande show. O que era missa virou também um batizado. Um novo rito de passagem. Pisamos juntos no gramado do Hyde Park. Olhamos em volta. Eram muitos os fiéis. O inusitado sol de 36 graus em Londres parecia confirmar que o Rio de Janeiro, que minha mãe tanto gostava, havia mudado de lugar. Os gritos e aplausos são o nosso sino. A missa vai começar.

Mick Jagger nos conduz com o cântico “Start me up”. O fato de Keith Richards ainda estar vivo é um milagre. Tudo conspira para que a minha fé fique fortalecida. Naquele espaço de tempo, eu olhava o passado e silenciosamente dizia mais um adeus. A Ju olhava para o futuro e dizia oi. Eu pensava no que fui, ela no que seria. Eu caminhava pela nostalgia, ela saltitava no presente. Eu reconstruía as lembranças, ela guardava os momentos para relembrar um dia. Eu estava partido, ela me reintegrava por inteiro. Era, sem dúvida, uma missa de renovação.

Um fiel observa a nossa cena. Percebe que há algo especial. E pede para registrar. Estamos todos unidos em uma grande celebração. Todos cantam juntos. Há pessoas que choram durante as canções-orações. O clima é de comoção, de paixão, de fervor. Do mesmo jeito que existe o mendigo que invade a igreja, aqui os loucos rolam pelo chão. Trôpegos, realizados, felizes. A música é uma religião que aceita a todos. As portas da Igreja dos Stones estão abertas.

Percebo que o fim se aproxima. Começamos a nos afastar do altar. O som vai diminuindo, a emoção não. “You can’t always get what you want” soa como um salmo. Eu sei que eles estão preparando “Satisfaction” para o ato final. Ouço os acordes. A massa levanta as mãos para o céu e clama por uma benção. Cada nota é uma hóstia distribuída. Estamos todos perdoados.

Volto da missa e compreendo o sentido de ciclo. Penso que ainda preciso batizar a pequena Clara. Falta achar uma igreja adequada. Falo baixinho comigo mesmo: eu rezei por você, mãe. Ao meu modo, mas rezei. E me benzo com uma cópia da chave dela nas mãos.

Acendam a fogueira.

A definição foi cunhada pelo Kassin: a “Simonalização” de Ed Motta. Não precisei ler o texto para entender o que significava. Para compartilhar a mesma sensação. De uns tempos para cá, pega mal dizer que você gosta do Ed Motta. Os infelizes comentários no Facebook criaram um enorme fosso entre o artista e o público. Nesse fosso, estão as duras palavras de Ed, o seu jeitão que soa arrogante, as divagações sobre vinho repletas de notas de frutas, as suas certezas. Pouco interessa o som que ele está fazendo.

Volto para o meio dos anos 90. Naquela época, dei uma festa dessas que os vizinhos consideram a possibilidade de empalamento. Lá pelas tantas, tocou “Beat it” do Michael Jackson. Rolou um mal estar. Um climão. O albino Michael já tinha virado aquela mistura de Diana Ross com boneca Monster High. Estava envolto em diversas acusações de pedofilia. Ao escolher aquela canção, eu me tornei um herege. Um cúmplice de suas bizarrices. Gostar de Michael Jackson não era mais um comportamento aceitável. Tentei argumentar que Off the Wall e Thriller eram verdadeiras obras-primas. Em vão. Fui para fogueira.

A morte de Michael redimiu o ídolo. Não dissipou todas as camadas de suspeitas, não exterminou suas maluquices. Apenas, jogou uma merecida luz sobre a sua importância como músico, cantor e artista. Ele voltou a ser o Rei do Pop. Hoje, é cool gostar do pequeno Jackson. Escuto a brilhante versão demo de Billie Jean no meu fone, pensando na massa que me queimou naquela festa. Eu estava certo, seus ingratos.

O primeiro show que eu consegui entrar sem pedir a ajuda da minha mãe foi do Ed Motta. O até então sobrinho do Tim Maia estava estourado com “Manuel”. O mar estava flat, nada para fazer, eu de bobeira em casa. E apareceu a promoção na rádio: quem trouxer um disco de funk até a esquina da Joaquim Nabuco com Raul Pompéia, ganha 2 ingressos para o show do Ed. Eram menos de 500 metros. Peguei um vinil do George Clinton e corri para lá. Era a minha independência. Um show que a minha mãe não abriu a catraca.

Entrei no Teatro Ipanema sem saber o que esperar. Saí de lá impressionado. Lembro dele ter encerrado esse show com uma versão de Smoke on the Water, onde o riff era todo vocal. Logo depois, vi um show no Alternativa Skate Rock (esse com ingresso da mamãe). Estava configurado: Ed Motta era um cara para prestar atenção.

Guardo dele grandes momentos. Um show com o Blues Etílicos no Circo Voador que deveria ser reeditado. A primeira vez que eu ouvi o vinil de “Entre e Ouça”. Um site que ele tinha lá por volta de 97, que me fez descobrir e comprar todas as suas referências. Em especial, Donny Hathaway. A trilha de Pequeno Dicionário Amoroso. Um show na Oca do Ibirapuera onde ele cantou as suas influências, com destaque para Whole Lotta Love. A quantidade de vezes que escutei “Manual Prático”. A voz. A voz que parece tornar qualquer canção melhor do que ela é.

Não sou um grande fã de “Piquenique”, nem tenho roupa para entrar em “Aystelum”. Adoro “Chapter 9” e passeio curiosamente por “Dwitza”. Já vi o Ed Motta se complicar ao dizer que não gostava de música brasileira para depois descobrir que não era bem assim. Já o vi cantar em edmottês e defender que não via sentido nas letras. Em seguida, fazer parcerias com grandes letristas. Já me irritei com algumas longas explicações sobre vinhos ou chás. Com algumas cagações de regra. Só que mantive intacto o que admiro nele. Não pretendo gostar tanto no particular quanto no profissional. Ainda que eu acredite que deva ser bem divertido ouvir música e tomar uma cerveja com ele.

Entendo a indignação do Ed Motta com o cenário da música brasileira. Deve ser difícil ter que ficar vendo a ascensão de tanta bobagem. Escuto AOR e comparo com o que toca nas rádios. Chega a ser covarde a diferença de qualidade. Tão covarde quanto crucificá-lo até hoje pelos comentários no Facebook. Ele errou rude. Só que isso não pode apagar a sua música.

Penso nas minhas vozes favoritas sem uma ordem de ranking. Otis Redding, Stevie Wonder, Marvin Gaye, Donny Hathaway, Buddy Guy. Não tenho a menor dúvida que Ed Motta ficaria bem ao lado deles. Poderia ir para fogueira de novo com essa certeza. Meu conhecimento musical é bermuda de praia, o dele é traje de gala. Ainda assim, arrisco um conselho: keep singing and forget the social media, Ed. Vai por mim.

 

A minha barraca de ervas.

Música é a minha fluoxetina natural. É o meu Prozac. Meu playlist é “Banho das Sete Ervas do Descarregos”. Olho para as canções como uma curandeira olha ao seu redor. Stevie Wonder é o meu “quebra barreira”. Marvin Gaye é o meu banho contra mau olhado. Jorge Benjor é a minha “garrafada para gastrite”. Tom Jobim é o meu chá de “amansa tudo”. Meu iPod é a minha tenda da Dona Coló. Eu sei como cada música vai agir.

Se a raiva é grande, dilua em um chá de Kurt Cobain com Nine Inch Nails. Se a alegria é intensa, tome um banho de Wilson Picket com uma pitada de Otis Redding. Se a tristeza dói, evite Radiohead. Tenho tabuletas e receitas para cada mal. Na minha banca, disponho de diversas poções mágicas para atrair coisas boas. Basta um play para que a alquimia comece a funcionar. Na verdade, a música me emociona frequentemente. Nela, eu posso reencontrar valores perdidos, buscar lembranças, vasculhar os meus sentimentos.

Poderia citar inúmeros momentos em que chorei com uma música. Metade deles conectados com as minhas filhas. Não vem ao caso. Prefiro falar de dois personagens que me fazem acreditar que é possível. Charles Bradley é o primeiro deles. Um cantor maravilhoso de soul que só foi descoberto depois dos 60 anos de idade. Isso mesmo: 60 anos. Até então, trabalhava como chef de cozinha e juntava seu dinheiro ao longo das décadas para um dia tentar realizar o seu sonho. Conseguiu.

Lembro do impacto de ouvir a sua voz carregada de verdade. A canção era “The World (is going up in flames)”. Achei que era uma gravação antiga. Como eu pude ficar tantos anos sem ouvir esse cara? Uma rápida pesquisa revelou toda a história de Charles Bradley. O que já era amor virou paixão no momento que eu vi um vídeo de um show dele. Ele grita, chora, escancara cada recanto da alma. Ele canta puxando os sentimentos do dedão do pé. Nada fica de fora. Ele reergue as minhas crenças em dois discos maravilhosos: “No Time for Dreaming” e “Victim of Love”.

Depois, veio o Rodriguez. O Max de Castro falou de um documentário chamado “Searching for Sugar Man.” Isso foi antes do Oscar.  Fiz tudo legalmente como manda o figurino. Entrei no iTunes e baixei o danado. Quando eu percebi, estava chorando dentro de um avião. É das histórias mais inacreditáveis que eu já vi. Se fosse uma ficção, eu acharia que pesaram a mão. Porque afinal de contas, isso nunca poderia ter acontecido. Só que aconteceu.

Resumindo: o cantor e compositor Sixto Rodriguez lança dois discos nos EUA. Os dois são um fracasso retumbante. Nesse mesmo período, início dos anos 70, os discos chegam à África do Sul. Rodriguez vira um ídolo maior do que Elvis Presley. Sua música vira o hino de uma geração inteira. Pessoas tatuam seu rosto no corpo, colocam seu nome nos filhos. Só que ele nunca soube de nada disso. Para os sul-africanos, era um ídolo que tinha se sucidado no palco. Até que décadas depois, algumas pessoas resolvem investigar o que tinha acontecido. É um história que dissolve as minhas desconfianças. Escuto os seus discos como quem procura a fé perdida. E a encontro.

Ouvir Charles Bradley e Rodriguez é muito mais do que música. É sobre esperança. Na minha barraca de ervas, eles são o novo elixir. Coloco o fone no ouvido como quem toma um banho de sal grosso. De pipoca. De cheiro-cheiroso. Tudo está equilibrado. Consigo até admitir a possibilidade de habitar o mesmo mundo que o Malafaia.

Quem liga para isso?

1993. Aeroporto de Chicago. Estou dentro de uma van, sem hotel reservado e com uma mala repleta de gaitas. O motorista da van aguarda os outros passageiros. Enquanto isso, ele sorve mais um gole do seu refrigerante de 2 litros. Na outra mão, repousa um sanduíche do tamanho de uma criança de 5 anos, regado com doses generosas de mostarda. Entre as pernas, há um pacote de batata frita. Absolutamente surpreso com toda aquela comida, ouço uma pergunta feita com a boca cheia:

– O que (nhac) você veio (nhac) fazer aqui?

Hipnotizado pelo pedaço de queijo que está preso no seu queixo, demoro alguns segundos para responder:

– Eu quero conhecer mais do blues.

Ele ri. O pedaço de queijo desprende e cai fazendo barulho ao pousar na sua perna. Da perna para a boca foi um milésimo de segundo. Ele ri mais alto agora:

– Blues? Quem liga (nhac) para isso?

Eu tinha acabado de chegar na Sweet Home Chicago. Em busca dos ídolos, do verdadeiro blues, do aprendizado. Minha euforia foi soterrada pelas 20 mil calorias daquela van.

No dia seguinte, com a programação musical da cidade em mãos, quero derrotar a profecia do meu anfitrião glutão. Descubro que Kingston Mines, B.L.U.E.S e o Buddy Guy’s Legends são alguns dos bares com programação de blues nos 7 dias da semana. O calendário previa shows do Sugar Blue, Billy Branch, Otis Rush, Magic Slim, Big Time Sarah, Peter Madcat, Luther Allison, Jeff Healey e o grande Buddy Guy. Minha temporada estava garantida. Adentro orgulhoso pelo Kingston Mines e me deparo com o salão vazio. A profecia não estava tão errada.

A vida de um músico de blues não é fácil nem para os mestres, pensei. Naquela viagem, comecei a desistir de uma carreira de músico profissional. O menino branco brasileiro não poderia esperar mais do que uma lenda do blues. E eu vi os grandes nomes do blues tocarem para salões vazios com ingressos a 8 dólares. De quinta a sábado, o panorama mudava um pouco. As casas ficavam sempre cheias. De domingo a quarta, já era bem diferente. Buddy Guy era o filho pródigo da cidade. Já estava em uma situação mais confortável. Era uma exceção.

Toalhas brancas? Esquece. Mal havia roadie nos palcos. Não foram poucas as vezes que vi uma lenda montar e desmontar o palco praticamente sozinha. O fato de ser branco e ter vindo de tão longe facilitou muito as coisas. Acabei ficando próximo de vários músicos. Eu sabia solos inteiros, riffs, nome de canções. No fundo, não eram muitos os que ligavam para eles. O brasileiro que conhecia a história deles era um conforto não esperado.

Falo sobre essa época porque estou ouvindo o disco do Ben Harper e Charlie Musselwhite chamado: Get Up! Ben Harper aproveita a fama já alcançada para se dar ao luxo de gravar o que bem entende. E divide um disco inteiro com o gaitista Charlie Musselwhite. Ele precisava disso? Não. Poderia muito bem fazer mais um disco solo e faturar com uma turnê pelo mundo. Só que ele fez diferente. Ele abriu espaço para um ídolo. A capa é bem clara. Ele e Charlie têm a mesma importância ali.

Em Get Up!, Ben Harper é de uma gentileza sem fim com Musselwhite. As músicas foram pensadas para que o gaitista tivesse o destaque que sempre mereceu. O espaço para os solos, as bases com presença da harmônica, até mesmo o material de release que antecedeu o lançamento do CD. Tudo foi pensado para honrar um dos primeiros “white bluesmen”. Um homem que vem tocando a sua gaita repleta de acordes e melodias por décadas. O resultado é um disco poderoso. A voz rasgada de Ben Harper se encaixa perfeitamente com a gaita levemente distorcida de Musselwhite.

Ao reverenciar Charlie Musselwhite, Ben Harper antecipou-se ao tempo. É fácil homenagear os ídolos quando eles estão mortos. Ele o fez antes. É uma gentileza bonita de se ver. E melhor ainda, de escutar. Se eu tivesse o endereço do motorista da van, mandava esse CD de presente, uma caixa de Herbalife e um bilhete escrito: Ben Harper liga para isso.

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No maravilhoso mundo de Jorge.

A vida deveria ter a leveza das canções de Jorge Ben Jor. É a minha utopia particular. O meu desejo secreto. As coisas que imagino quando tudo em volta parece dar errado. Quando eu mesmo me sinto fora do tom. Nessas horas, eu recorro ao Ben. E sonho caminhar pelo seu universo.

Nada é capaz de me atingir. Porque eu estou vestido com as roupas, as armas e as lentes escuras de Jorge. E vejo tudo através dos seus olhos. Ogam toca pra Ogum que eu estou adentrando. Salve Jorge, Zé Pretinho, my brother Charles. Estou despido de acidez. Aqui, eu só quero torcer pela paz, pela alegria e pelas coisas úteis que se pode comprar com 10 cruzeiros.

Não tenho pretensão alguma de animar a festa. Quero apenas a honra de andar ao lado do macaco cientista, do urubu que toca flauta e violão e, claro, da internacional Deise, a mulher do homem que come raio laser. Quero a graça de falar voxê ao invés de você. Quero chamar o síndico Tim Maia para desorganizar a minha cabeça. Quero a cura para a hipocarioquice que me aflige quando sou chamado para tomar uma breja na padoca.

Vem comigo que o Crioulo Rei vai colocar a tristeza pra correr. Vem que a menina mulher da pele preta está cheia de malícia. Não aquela que mora na Pavuna e dança no simpático Pavunense. A outra, de olhos azuis e sorriso branco. Vem que são poucas as questões. Que plâncton é esse? Adivinha quem vai bater?

Licença, seu Umbabarauma. Cheguei para ver o que é corocondô. Para entender o zambá, o zambé, o zambi. Para soltar o sorriso “quinta série” que teima em aparecer ao ouvir que é para balançar a pema. Bebete vambora que eu preciso correr para a geral da minha nostalgia. Ouvi dizer que a falta é na entrada da área e o Galinho de Quintino é quem vai bater. E se não bater, tudo bem, porque é certo que vai rolar um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa.

Estou entre jatomóveis, bancários, ruas e avenidas. Não me aflijo. Sei que  conto com a proteção de Charles, Anjo 45. Sei que Jorge é da Capadócia e meus inimigos têm pés, mas não me alcançam. Tudo aqui é abençoado por Deus e bonito por natureza. Sinto-me embalado pelas canções que ninaram as minhas filhas. Os olhos fecham de leve ao ouvir “Santa Clara clareou..” e o pranto cessa com a simples menção de “Menina bonita não chora.”

Alô, alô Tia Léa, quebra essa. Diz que a minha nega não chama Teresa, mas que eu sou Flamengo. Peço com o requinte da gramática: deixe-me pular de faixa em faixa. Deixe-me ir para o meio da rua do mundo e ficar a girar.  Que maravilha é o mundo encantado de Jorge.

No céu, o Sol declara o seu amor pela Terra. Nesse mesmo céu, chove sem parar. Sigo esbarrando em figuras fantásticas. O namorado da viúva passou por aqui. Entorto o pescoço na busca do dote físico invejável dela. Pela letra, posso afirmar que aquele ali na frente é Roberto e seu dragão. Corto essa. Aceno para o meu irmão de cor e digo: Take it easy. Ele sorri e me aponta a chegada dos alquimistas. Vejo também Hermes Trismegisto e a sua tábua de esmeralda. Procuro por Xica da Silva, Zumbi, Saci e o príncipe Shah-Jahan.

Antes de sair dessas canções, preciso encontrar o emblemático “Homem da Gravata Florida.” Sai da minha frente que eu quero passar, digo para o vendedor de bananas. Alcanço um caminho de flores e amores. Achei o homem. Peço emprestado o seu relatório de harmonia de coisas belas. Ele atende ao meu pedido. Aquela gravata toca o meu pescoço e é verdade: ela me faz um homem simpático e feliz.

Sinto que a canção está perto do fim. Refaço o gesto de Jorge. Levanto o braço e grito para a banda do Zé Pretinho: em cima! E o meu universo encerra em simpatia.

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O meu King favorito.

Caminho pela beira da estrada 61. Acho difícil que ele vá aparecer. É gente demais em volta. O lugar do pacto virou um ponto turístico. Penso que se ele apareceu para o Ralph Macchio, o Karate Kid, por que deixaria de aparecer para mim? Preciso da benção do senhor de todos os blues. Na dúvida pelo ritual necessário, tento todos. Corto o dedo e deixo o sangue gotejar na encruzilhada. Acendo uma vela. Começo a tocar gaita na tentativa de evocar um trem. Nada. Já estava desistindo, quando eis que surge Robert Johnson em carne e osso. Ou quase isso. Eu:

–       Salve, salve meu São Crossroads. Estou prestes a cometer um sacrilégio, preciso do seu aval.

Ele está sentado numa cadeira, na mesma posição da sua foto imortal. Pernas cruzadas e chapéu. E me diz:

–       Sacrilégio? É comigo mesmo, malandragem. Manda a letra.

Estranho ele usar uma gíria atual, mas beleza. Sigo:

–       Seu Robert, sabe o que é, o B.B. King não é o meu King favorito. Não é por ele que eu luto. Tem solução?

Ele sorri:

–       Hmmmm, seu caso é grave, my son. Reza 15 “The Thrill is gone” e open um Jack Daniels pro Satan.  Com B.B. King não se mexe.

O Robert Johnson começou a falar que nem o Joel Santana. Evito comentar. Pergunto na mesma língua:

– Only isso?

Robert Johnson:

–       You didn’t need to cut o dedo. Quer um band-aid?

E some. Andei até Clarksdale à toa. Faço um curativo no dedo. Band-aid da Hello Kitty? Porra, Robert. Putz, esqueci de perguntar se ele não ficou puto com o Steve Vai duelando com o Karate Kid. Ele merecia algo melhor.

Depois de cantar o hino do condado de B.B. King 15 vezes, crio coragem. São três os Kings do blues. B.B. , Albert e Freddie. B.B.King é o dono do maior reino e do maior número de súditos. Nada mais merecido. Basta uma nota na sua guitarra para saber quem está tocando. Um estilo único que ajudou a fundamentar o blues no cenário mundial. Carismático, dono de uma voz que beira à perfeição, um showman como poucos. Meu primeiro contato com o Rei foi no disco “Live in Cook County Jail”. Escutava em looping. Está tudo ali. Todos os mandamentos para adentrar no reino do blues. Sem trombetas anunciando, apenas Lucille. B.B. King é e sempre será o maior dos Reis.

Albert King é o canhota de ouro da trinca. Trajando uma Flying V com as cordas invertidas, era capaz de dar aquelas notas que você sente na espinha. Para pisar no seu reino é preciso cantar o hino é “Born under a bad sign.” Mas para ser um súdito é preciso aprofundar-se no seu estilo. Harmoniza bem com o piso grudando de cerveja, shots de whisky e aquele clima “te considero para caralho” no fim da noite. Vi o Grande Rei Albert numa noite em 1992. Poderia ser um de seus cavaleiros, poderia lutar por ele, não fosse o próximo nome da lista.

Se eu tivesse que lutar por um desses Reis, lutaria por Freddie King. “Burglar” é a minha Excalibur, “Pack it up” é o meu hino. Freddie é o meu King favorito, por mais profano que seja dizer isso quando B.B.King está na disputa. Seu reino não é o maior, mas é onde eu me sinto melhor. Tecnicamente era um guitarrista imbatível. Ele e Buddy Guy são os meus favoritos nesse quesito. Buddy que poderia muito bem ter um King no seu nome. A voz é poderosa, daquelas que derrubam um exército. E desde sempre ele apontava para o futuro. “Pack it up” é um primor. É blues, rock, funk e tem as convenções mais intrincadas. É daquelas canções de calar a boca de quem acha que blues é simples.  O Rei Freddie fez de mim um súdito fiel e a ele serei devoto por todo sempre. Por “Getting Ready”, por “Texas Cannonball”, pelo luxo de ter Eric Clapton na guitarra base. Na minha subida aos céus, troco as harpas pela guitarra de Freddie. No inferno já deve ter uma banda de blues boa, só peço que ele faça os solos.

Conto com a clemência de B.B. e de Albert. Meu reino é de Freddie. Por ele, fui a uma encruzilhada na esperança da benção de Robert Johnson. Aliás, pedir benção para um sujeito que fez pacto com o diabo é pecado? Pouco importa. Preciso é entender que cacete ele fazia com um band-aid da Hello Kitty

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O outro lado da fita.

O apartamento é grande. Um belo exemplar da velha Copacabana. A vista é inexistente. Estou repleto de espaço e o que posso ver são os discos que me cercam. Há um quarto inteiro reservado só para eles e um solitário sofá. Um empreendimento imobiliário rapidamente acharia um nome em inglês para isso: vinyl room, audio experience room, listening room. Pouco me importava. As madames têm closet para sapatos? Meus pais tinham um quarto para os discos de vinil.

O leitor mais jovem, acostumado com música guardada em HD, talvez não entenda esse sentimento. Normal. Em 2009, um adolescente chamado Scott Campbell trocou o seu iPod por um Walkman. Um experimento de 1 semana. Ele demorou 3 dias para descobrir que a fita tinha um outro lado. O que nos leva a outro fato curioso: a expressão lado B não faz mais sentido. Scott reclamou da capacidade de armazenamento, do peso, da pouca praticidade do walkman, dos ruídos. Com toda razão. Não farei aqui um inocente brado “na minha época era melhor”. Sinto saudades de alguns rituais, da espera, do quarto de vinis. É disso que eu falo.

Voltar a fita K-7 na caneta para economizar pilha do Walkman era um ritual sagrado. Lembro que as locadoras de vídeo cobravam uma taxa extra para quem não entregasse o filme VHS rebobinado. Fita K-7, VHS, locadora de vídeo e rebobinar: tudo caiu em desuso. Mas era uma arte delicada que podia quebrar ou enroscar a fita. Coisa para se gabar no recreio. Como conseguir soprar uma bola dentro da outra de chiclete Ploc ou fazer a Torre Eiffel com o ioiô.

Mesmo cercado  de música, ainda me dava o trabalho de gravar os programas da rádio Fluminense, a Maldita. O Mississipi Dreams era um clássico. Você ficava ouvindo o programa e olhando para a fita. Rezando para dar tempo. Para driblar essa pirataria old school, as rádios colocavam uma vinheta no meio da música. Amaldiçoei cada uma delas, enquanto esperava a pilha ficar na temperatura certa no congelador.

O vinil envolvia uma série de outros rituais. Acertar a agulha entre uma faixa e outra era a técnica em disputa. Quando falo em espera, falo também desse intervalo. Do silêncio que envolvia o começo da primeira faixa de cada lado do disco. Do estalo, do ruído bom. Pronto. Já virei o coroa nostálgico.

Vinil podia ser lavado com água. Música dava um trabalho danado. Download era um amigo que voltava de viagem com muamba na mala. Era a minha mãe pai entrando em casa com as amostras invendáveis que chegavam das gravadoras. Era o inesperado. Discos não vazavam, havia um longo delay entre exterior e Brasil. É, a gente chamava de exterior.

Subindo a ladeira de volta ao meu apartamento. O trajeto para quarto de vinil era uma viagem pelo mundo da música. O corredor não tinha um espaço sequer nas paredes. Tudo estava coberto com cartazes de shows dirigidos pelo meu pai, eventos que a minha mãe trabalhou, fotos de família com cantores no meio. Não bastasse isso, meu vizinho de baixo era o Sérgio Cabral (o pai). E seu apartamento era outro templo do samba e da MPB. Eu cresci filho único cercado de sons por todos os lados. O tempo passava com o girar de um disco.

O forte do acervo era MPB. Mas o clima Copacabana de mistura não escapou do quarto. Se o bairro é famoso por reunir uma ampla fauna de travestis, jovens e velhinhas de cabelo violeta, o quarto tinha de tudo. Forró, bossa-nova, heavy metal, reggae, rock, ópera e o disco inesquecível: John Mayall & the Bluesbreakers featuring Eric Clapton. A partir da descoberta desse vinil, comecei a ouvir blues. Depois entrei pelo rock. E fui mergulhando cada vez mais fundo na estante até sair dela com uma gaita no bolso. Só mais velho, já com CDs, redescobri a música brasileira.

Um pedaço desse quarto voltou para mim. Falta coragem para adentrar nos vinis, falta espaço na casa, falta uma vitrola. Estou cercado pela facilidade da música digital. E confesso adorar essa tecnologia. Tenho um HD repleto e os links não páram de pipocar na minha tela. Só que tal como um Scott Campbell grisalho, tinha esquecido que na fita há outro lado. Virei em busca do meu passado. E encontrei essas lembranças gravadas.