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O ano acabou

Foto: Marcão Medeiros

Vai, pega uma cerveja gelada, que o ano acabou. Não teve samba na rua, não teve euforia libertina, ficou uma demanda reprimida, e o churrasco, até isso derrapou. O ano acabou. 

Vai, abre essa cerveja gelada, pega aquele copo americano riscado, risca o calendário, olha pra frente, o tempo parece nublado, mas não tem jeito. Foguete não dá ré, mas as ideias retrocedem. Bora puxar esse bonde rumo ao que vem. O ano acabou, e quem não está acabado?

Vai, serve, escuta o barulhinho, enche o copo devagar como uma sexta que nunca chega, como os minutos na sala de espera. Reflete o que passou, já enxugou a mágoa, mas não passou pano. Torce. Torce para entrar molhado de água salgada. Torce, que o ano acabou. 

Vai, é hora de aproveitar aquele primeiro gole. Preparar um passeio pelas lembranças boas que sobraram. Rodar pelos caminhos que valeram. Vai, que é vacina, não é cloroquina. Como escutei outro dia, estamos com os dedos roxos de carregar as sacolas pesadas, mas ninguém solta até chegar em casa. O ano acabou, mas a gente segue daqui.

Vai, encosta o copo na mesa, passa a mão pela marca do líquido que ficou na madeira, esfrega o dedo fazendo com ele um novo desenho, não pensa demais. Já são quase dois anos duríssimos e com tanta gente que partiu num rabo de foguete. Choram Marias e Clarices. A gente sonha viver um momento histórico, mas ninguém avisa que a gente não escolhe o momento. Você pensou que seria incrível estar na Queda do Muro, no sítio dos Novos Baianos, no estádio com um Pelé de 17 anos a desfilar lençóis, e o destino veio com pandemia. É sacanagem. O ano acabou. 

Vai, vamos puxar algumas lembranças boas daqui, pois chorando eu vi a mocidade perdida. Não quer ir? Eu vou. Deixa que eu puxo as primeiras que me vêm. Depois é a sua vez, combinado? Gilberto Gil na cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras trouxe aquele efeito solar que só alguns fatos e pessoas são capazes de produzir. Não pela Academia, mas pelo que Gil representa na cultura brasileira, com sua erudição popular que transcende o saber acadêmico porque Deus lhe deu régua, compasso e poesia. Teve gente que chiou um chiado de remédio efervescente. Fez barulho e sumiu na água amarga. É gente sem sim, sem som, sem sal. Gil é refazenda, refavela, refestança. Gil é Drão, de um amor que é como um grão que morre e nasce trigo, vive e morre pão. E a fé tá num pedaço de pão, como ele cantou em “Andar com Fé”. Gil é o canto de Caetano a nos lembrar que só os sons e os dons geniais nos salvarão das trevas e nada mais. O ano acabou.

Vai, não vai, sigo eu. Sorve a cerveja, então. Entrei o ano lendo “Torto Arado” e, como tantos outros leitores, ainda sou capaz de sentir a aflição da junção das palavras faca e língua. Na sequência, pedi para um amigo uma lista de livros de autores brasileiros. Pedir listas para amigos abre muitas portas, e aqui não foi diferente. Através dele li “O Avesso da Pele”, do Jeferson Tenório; “Solução de Dois Estados”, do Michel Laub; “Marrom e Amarelo”, do Paulo Scott; “Enterre os Seus Mortos”, da Ana Paula Maia, e “Suíte Tóquio”, da Giovana Madalosso. Tem coisa boa pra valer sendo escrita no Brasil. Não o bastante, ainda teve o retorno do Marçal Aquino, com capa lindíssima do Marcelo Tolentino. Marçal sabe dos paranauês todos. Outro que sabe demais é o professor Luiz Antonio Simas, que soltou um livraço sobre o Maracanã. E teve o Chico Buarque em contos. A arte literária brasileira contemporânea fará ainda mais sentido nos anos seguintes. O ano acabou. 

Vai não, agora engatei. Lembrei do xadrez com capoeira do amigo Felipe Silva. Vida longa à Gana. Salve, Ary! Salve, simpatia! Boa noite, boa noite, bom dia. Salve, Jorge! Salve, Mano Brown! Salve, Mano a Mano! O melhor conteúdo do ano vem cercado de muita gente boa fazendo acontecer. Semayat Oliveira, Jaque de Paula, Renata Hilario (obrigado por mexer no texto), Eliane Dias, Kaire Jorge, Jef Delgado. A curiosidade que sobra no Mano e a genuína vontade de ouvir criaram um lugar especial demais para ficar em 2021. O cara está ali entregue para aprender, trocar, inspirar, espalhar conhecimento. “O doutor era gangueiro” foi um dos risos mais soltos que deixei no ano. Os chiadores chiam, e o Mano Brown sabe mais que a Academia da Porra Toda. O Coruja versando em quatro minutos, também. O ano acabou.

Vai, vai, malandra, a Anitta tomou conta do mundo. A Rayssa Leal tomou conta das pistas. Ficamos com aquela sensação de inveja da confraternização entre as atletas do skate. Em um mercado que puxa para baixo, é bom ver quem joga para cima. No dia em que a Rayssa estava na competição, cortei a mão num pote de vidro. Esperei tudo acabar para ir a um posto de saúde local e levar pontos. O médico esqueceu uma lasca grande de vidro dentro da minha mão, tive que fazer uma cirurgia depois, mas é outra história. A fadinha nos salvou momentaneamente; a vacina, também. A skatista filipina encheu o coração. O ano acabou.

Vai, voa para a Lua, disse para a minha sogra que partiu no ano. Vai, voa para o céu dos cães, o céu para onde eu quero ir, disse para o meu cão que partiu também. O momento em que a dor vira uma saudade quente é uma das chaves que a gente deveria ter num molho no bolso, para lembrar sobre a importância dos ciclos da vida. O ano acabou.

Vai, abre outra cerveja, beba com moderação, viva com menos moderação. Aquela sensação de que as coisas estavam sob controle era uma ilusão. Bastou um vírus. Os profetas do novo normal faturaram alto? O Ailton Krenak tem uma resposta para eles, a pandemia não vem para nos ensinar nada. A fome ronda o país. O ano acabou.

Vai, que eu vou na sequência. No nosso mundinho, teve o documentário dos Beatles. “Get Back”, “Don’t Let me Down”, “Let it Be” e um Paul McCartney exalando brilho. Não se ouve um “genial” no estúdio. Nenhum. Já ouvi tanto “genial” gasto à toa, mas chega desse papo. Como diria Jorge Ben: em cima. Como canta um samba: mete o pé, vai na fé. O ano acabou. 

Vai.

Crédito ou débito?

Um resto de café gelado no fundo da xícara. Um pequeno biscoito amanteigado com a sorte de não ter sido devorado. Um garçom levemente ansioso com uma máquina na mão. Esse era o momento mais angustiante do almoço para o meu amigo Cesar Herszkowicz. Quando surgia o pavoroso enigma: é débito ou crédito? Em seguida, a mesa inteira passava por longos segundos de sofrimento. Uma espera que sempre terminava com o Cesinha dando a resposta errada. Para ele, o mundo carecia de uma nova palavra: “crébito”.

Penso nesse enigma. Na ausência do meio-termo. Você tem que optar pelo crédito ou débito. Só que é muito mais fácil entrar no débito do que ficar no crédito. A regra vale para conta bancária ou relacionamentos.

O gerente do banco liga para avisar que a sua conta entrou no vermelho. O caixa eletrônico faz questão de ressaltar que a taxa agora é mais pesada. O Serasa adentra nos seus sonhos. O débito nunca passa desapercebido. É como o primeiro fio de cabelo branco. Um exibido. O crédito é o esperado. O comum. Para que o gerente note a sua existência, você precisa de uma conta eikebatistiana. Caso contrário, você não fez mais do que a sua obrigação de estar no azul.

De um jeito ou de outro, estamos sempre devendo. Mesmo sem saber. São tantas as funções que algo ficará pendente no balanço final. O profissional exemplar, em alguma hora, vai descobrir que está em débito com a família. A mãe dedicada sente-se em débito com a profissão. O amigo entra em débito por não responder uma ligação. Nos múltiplos personagens que exercemos, há algum que ficou aquém do esperado. Que não bateu a meta. Ficamos a esperar um gerente personnalité que nunca surge. E assim,  entramos no cheque especial das relações.

Procuramos conforto na crença de que o montante de crédito vai amortizar a dívida. Sinto informar: não vai. Se você não cumpriu com as expectativas, não adianta discar 1. Se você deu um mole, não tente teclar 2. Pegue o seu extrato e confira. Aquela informação com letras pequeninas é o seu crédito. O asterisco de letras garrafais vermelhas é o seu débito.

Volto para a cena do almoço. Pego o biscoito amanteigado. O Cesinha estava certo. A vida deveria ter uma maquininha diferente da Cielo. Uma que permitisse a pergunta: é “crébito”, senhor?

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Uma volta.

Volto ao mesmo tema. Um ritual de despedida que, por mais que eu decore, sempre me surpreende. O momento da pergunta. Aquelas hora em que as malas estão na porta e as minhas filhas olham nos meus recantos mais escondidos. Porque elas sabem aonde eu desmancho. E dessa vez, elas perguntam em uma coreografia não ensaiada: volta bem?

No caminho para o aeroporto, penso nas voltas que sonhamos. Um sabor, um momento, o som de um alô, uma sensação. Todos nós guardamos, mesmo que secretamente, o desejo de que algo nos volte.

Uma sessão da tarde carregada da urgência de um Nescau com misto-quente. Uma manhã gelada em que ninguém imaginou que teria onda e você acreditou. Um abraço maternal naquela crise de dor de ouvido. Um cheiro distante de bronzeador na toalha de praia. Um sabor que ficou perdido na infância, mas que volta ao fechar os olhos. Aquele alívio que surgia no décimo segundo após o uso de Merthiolate. A mera visão do Zico ao entrar em campo. Uma chance de pedir desculpas ou de ter o que não foi vivido.

Minhas filhas querem que eu volte bem. Já falei sobre essa impossibilidade de resposta que me aflige. Resolvo pegar emprestado o olhar delas. Elas me querem de volta como aquele filme visto dezenas de vezes. Querem essa sensação circular. Essa certeza. A diferença é que elas admitem. E é um poder admirável esse.

Podemos dizer que as crianças são românticas. Que são meras sonhadoras.  Cada dia mais, tendo a acreditar que elas são é corajosas. Porque conseguem colocar na mesa, mesmo que tateando as palavras, o sentimento mais profundo. Uma inveja, uma aflição, uma saudade que seja. Só que em alguma hora, essa coragem se vai. Até lá, aproveito. Sem revelar que guardo comigo uma volta impossível. A volta da irresponsabilidade. Da fala sem filtro, do não pensado. De ser que nem elas: criança novamente.

Quando se é único.

Pesam sobre o filho único todas as expectativas da casa. Ele é o centro das atenções, o protagonista solitário das histórias contadas para os amigos, o depósito unificado de afeto, o singular. Tido como reizinho, o filho único carrega desde pequeno o cetro que não escolheu. E caminha pela vida com a sua coroa cravejada de divagações em um eterno “e se?”.

É do filho único saber conviver com o silêncio. O que a muitos amedronta, é um parceiro antigo para ele. Amigo invisível? O filho único tem uma turma deles. São adversários fundamentais na mesa de botão e no videogame. Sem eles, o filho único chuta a bola e é a parede que devolve. Com eles, a bola é devolvida por esses companheiros.

Sem irmão mais velho, o filho único aprende muito rápido a fechar a porta do quarto, porque são muitos lá fora, no mundo. E quando grande, sabe como ninguém trancar-se em si mesmo.

O filho único ri discretamente quando irmãos brigam. E sonha quando eles se abraçam. Como disse o André Laurentino, em um texto que inspirou esse: “Muitas janelas são alternativas, são outras vidas que não a dele, outros sonhos.” É um observador nato. Ser filho único é não achar estranho alguém almoçar sozinho. É a volta da escola, o jantar da noite em que seus pais saíram, o lanche no primeiro dia de aula.

Apesar da fama de mimado, o filho único tem que saber se virar. Ele é obrigado a criar suas próprias alternativas. Com tantas expectativas, ele aprende a ser responsável. A ter que tomar decisões sozinho. A evitar pedir ajuda. Pode ser perdido no trânsito ou em uma crise. A primeira alternativa nunca é o outro porque esse outro nem sempre esteve lá. Filhos únicos dão o seu jeito.

Eles não saltam de grandes alturas sem conferir o fundo. Não entram em ambientes sem analisar cada minúcia. Não deixam missões pela metade.

Uma vez, liguei para minha mãe e disse: “Mãe!” E ela me respondeu: “Quem é?” Rimos. Eram muitos os pupilos ao seu redor. Creio hoje que essa ligação me preparou levemente para a despedida. Quando não sou nem filho, nem único. Quando escrever é largar o cetro e abrir uma porta de frente para as minhas filhas. No plural.

A vida da minha mãe são as canções do Roberto.

Eu preciso abrir esse texto em confissão. Toda vez que ouço o Roberto Carlos cantando “Emoções”, meus olhos se enchem de lágrimas. É uma das músicas mais lindas da MPB. Mas a parte que me cabe a emoção é que, desde que ouço esta canção, ouço a vida da minha mãe.

Ainda pequeno vi a dona Ivone Kassu adentrar um avião do Roberto. Era uma excursão pelo Brasil afora. Se não me engano, chamada “Emoções”. Foram meses revendo a minha mãe em datas esporádicas. Ela, com um cabelo curtinho, voltava e me abraçava falando: “Deco”. Era um abraço de saudade pura e o sorriso de um trabalho realizado.

Hoje, ainda me sinto como esse menino. À espera de ouvir meu apelido de infância, de vê-la sair de um avião, de um show, de uma estreia. De voltar para mim, apenas. Mas ela resolveu sair no meio da festa. Logo ela, que sempre esperou até o último segundo de cada peça, de cada show, de cada momento. Saiu enquanto havia uma imensa plateia à sua espera.

Adiei escrever esse texto por dias e dias. Chegou a hora. Penso no Roberto e no Erasmo. O privilégio que me foi concedido de estar perto desses dois grandes homens. Penso na minha mãe. Penso nas canções que hoje ganham novo significado. Quando ouço “eu quero ter um milhão de amigos”, sei que minha mãe teve cada um deles. Como disse o doce Padre Jorjão, se tudo que vem de Itu é grande, o coração da minha mãe era enorme. Soube arrumar um espaço para cada um desses amigos. Para o repórter que estava iniciando, para o aprendiz de cantor, para a jovem atriz, para a diva, para a estrela, para o consagrado, para o Rei. Sem distinções. Todos eram amigos e juntos eram um milhão.

Hoje, eu fecho os olhos e a ouço cantar “não adianta nem tentar, me esquecer. Durante muito tempo em sua vida, eu vou viver.” E respondo: “não tentarei, não esquecerei.” Canções que eu imaginava serem de amor homem x mulher, hoje soam filho x mãe. E canto baixinho “Das lembranças que eu trago na vida, você é a saudade que eu gosto de ter. Só assim sinto você bem perto de mim outra vez.” Nessa mesma música, penso em todas as brigas e diferenças que tivemos. Ela, inebriada pelo mundo, eu, quieto no canto. E, agora, sei que Roberto já cantava “Você foi, dos amores que eu tive, o mais complicado e o mais simples pra mim.”

Olho para as minhas filhas e lembro de um lindo texto que a minha mãe me deu no nascimento da Julia. Um texto do Afonso Romano de Sant’Anna chamado “Antes que eles cresçam”. Que fala do amor que uma mãe tem que reter e que ser avó é poder libertar todas essas correntes. Penso no que ela reteve. E me vem a canção “Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino e na hora do meu desespero gritar por você. Te pedir que me abrace e me leve de volta pra casa.” Para a rua General Barbosa Lima, 95. Onde o sinteco estalava durante a noite, onde a casa era enorme para um filho único, mas onde havia você. A minha Lady Laura.

Poderia citar diversas músicas daquele que foi um dos homens mais importantes da vida da minha mãe. Um Rei que eu passei a idolatrar ainda mais pelas palavras e pelo carinho que me deu na despedida. Mas existe a canção, a definitiva. Aquela que mexe comigo enquanto digito cada uma dessas palavras: “Emoções”. O avião que a levou para longe de mim, dessa vez não retorna.

Minha mãe seguiu cada palavra dessa música. Cada proposta. “Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo…” Estreias, shows, festas, jantares, não importa. Ela viveu cada momento. “Detalhes de uma vida, histórias que eu contei aqui.” Minha mãe é um pilar essencial na assessoria de imprensa e na divulgação da cultura brasileira. Ela, de fato, contou aqui. “O importante é que emoções eu vivi” é a frase que resume a vida dessa mulher.

E agora, cá estou eu. Não o André, mas o Deco. Olho para trás, tentando encontrar um ressignificado. E lhe digo, mãe: “Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer…. Como é grande o meu amor por você.”

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Perguntas sem respostas.

Pai, por que a vovó tem cabelo vermelho e todas as outras têm cabelo branquinho?

Como é que a vovó consegue combinar tantos anéis e tantos colares?

Por que só a nossa vovó pinta as unhas de verde?

A vovó é meio maluca, não é?

Por que a vovó sempre traz um ovo de Páscoa com um sabor que nunca ouvimos falar?

Por que ela dorme em todas as peças infantis e diz que não dorme?

Por que a vovó conhece tanta gente? Ela é famosa?

Se a vovó é de Itu como é que ela calça 33?

Por que a vovó virou uma estrela?

E agora? O que a gente faz quando der vontade de falar com ela? Essa eu acho que consigo responder. Sabe esse amor que ficou guardado? Você pega a caixinha e abre. Pode ser que saia uma lembrança boa, um cheiro, uma risada. É só abrir e, clic, sai até mesmo um textinho, viu?

Para a Juju e Clarinha.

Promete?

Coloco a minha filha na cama pouco antes de embarcar para a China. Ela me pergunta: pai, promete que não vai acontecer nada com você na sua viagem?

Promessas de um pai para um filho não foram feitas para serem quebradas, ainda que possam. Para não quebrar, evito dizer que prometo quando não tenho certeza.

Promete que vai chegar mais cedo do trabalho? Adoraria, mas não posso prometer. Os dias são incertos. Mesmo com os seus olhos de Gato de Botas, terei que dizer não.

Promete que vai na minha apresentação de teatro? Prometo porque deixo o que tiver para trás.

Promete que não vai me decepcionar nunca? Não prometo. Terei que impor limites, não gostarei de alguns dos seus namorados, serei grosso sem querer. Decepcionarei.

Promete que não vai roubar nas nossas brincadeiras de luta? Não prometo. A regra de não valer cócegas nasceu para ser quebrada.

E a mais fácil de todas: promete que vai me amar sempre? Prometo porque esse sentimento sempre será mais forte do que eu.

Há promessas que fazemos pelos nossos filhos sem que eles saibam. Em pensamento. Prometo arrancar um braço, se preciso for, para você ser feliz? Prometo. Há as contraditórias. Prometo abrir um espaço na cama para você entrar mesmo que eu sempre diga que não? Prometo.

Há promessas de todos os tipos. Mas essa pergunta me quebrou. Porque é uma promessa impossível de ser cumprida. Porque não depende de eu querer. Depende de uma série de fatores que eu não controlo. Ao me pedir para ter certeza que eu voltaria bem, minha filha quer a segurança de um destino perfeito. Um controle absoluto dos fatos. Ela sonha com o impossível justamente por ser criança. Um sonho bom que vamos perdendo enquanto crescemos. Enquanto criamos as cascas dos seguidos tombos. Mas ainda assim, eu olhei para ela e respondi. Portanto, se existe mesmo alguém aí em cima, saiba que eu disse: prometo.

Curtir para ser curtido.

Eu nem deveria tocar nesse assunto, uma vez que o Jonathan Franzen o fez tão brilhantemente em seu artigo “Curtir é covardia”, que o tema parece encerrado. São tantas as verdades claramente explicadas, que o perigo aqui é apenas repetir o que já foi dito. Aceito o risco.

Curtimos na esperança de sermos curtidos, também. É uma regra subliminar. Um jogo não explicado, mas que está ali. Repare como muitas vezes um like só vem na sua direção se você deu um outro antes. Que um elogio só vem se você elogiou. É certo que muitas vezes acontece pelo acaso mesmo. Seguimos tantas pessoas que nos esquecemos das que realmente gostamos. Fulano curte a sua foto no Instagram. Automaticamente, você lembra que esse fulano tem grandes fotos e curte as dele numa recíproca honesta, verdadeira. Mas que, por seguir tantos, você vem esquecendo. Fulano, nesse caso, pode ser um amigo, um conhecido, um desconhecido. Você o segue porque gosta das fotos dele, oras. O que importa ali é isso, afinal, não? Bem, não. Conte com a possibilidade de que amigos seus tenham fotos ruins. E que você, portanto, pode não querer seguir ou distribuir likes feito um Silvio Santos no auditório. Por uma questão social, somos induzidos a curtir o que não curtimos, de fato.

Claro que curtir fotos ruins não é um crime. Até porque ruim é um critério subjetivo. Para o meu amigo Marcos Medeiros, ruins são todas as fotos de comida e feeds que parecem álbum de família. Agora, há fotos que você sabe qual significado tem para aquela pessoa. Exemplo: um amigo seu é fã de um artista, você sabe disso, ele fotografa meio fora de foco e joga. É uma foto com história. Eu, por exemplo, tendo a dar like em qualquer foto do Rio de Janeiro por um motivo passional. Porque me leva de volta ao berço. O ponto é: ninguém é menos amigo de ninguém por discordar. É a opinião sincera do outro que nos impede de passar ridículo até. De usar acaju, que seja.

A regra vale para o Facebook, também. Lá, a expectativa de um retorno é ainda maior. Somos avisados de aniversários de pessoas com que nos importamos e isso é um facilitador. Mas somos avisados das que pouco fazem diferença e, por uma ferramenta que não a nossa memória, damos parabéns. Afinal, pega mal não dar. Nivelamos amigos e conhecidos sem grandes distinções que não o tamanho das nossas mensagens ou a quantidade dos nossos likes.

No mundo real, há uma imensa massa de pessoas que não quer opinião. Quer apenas a confirmação. Não é à toa ouvirmos: pensei numa ideia do caralho, o que você acha? E ai de você se não gostar. Não é uma atitude condizente com um mundo de curtir e distribuir corações virtuais. Como diz o Franzen: “Todos nós podemos suportar momentos em que não somos curtidos, pois existe uma gama virtualmente infinita de curtidores em potencial”. Você pode não me curtir, mas 89 outros curtiram e isso basta. Em um jogo social, não opinamos, falamos o que o outro espera ouvir.

Eu sou viciado no Instagram. E muitas vezes me peguei contando os likes. Eu sou a prática da teoria. Ao me observar fazendo isso, percebi que estava querendo ser curtível. Com tantos cuidados para não jogar fotos das minhas filhas, estava exposto do mesmo jeito. Resolvi mudar o jeito de usar. No mundo do curtir para ser curtido, em que likes assemelham-se a moedas, parece mais valioso trocar 1000 emoticons pela sinceridade. Mesmo que você perca seguidores, avatares e a mão de um amigo fazendo joinha.

Assumidamente involuído.

Pega o martelo, olha a platéia de cima, busca um braço esticado ou qualquer outro gesto, e bate. Em suma, era assim que via o seu próprio trabalho. Fazia-o por herança, e porque nada mais sabia. Seu avô foi perfeito, seu pai manteve o padrão. Ele, não. Ele apenas parecia o que nunca quis ser. Ninguém desconfiava. Nem os senhores distintos, muito menos as senhoras com hálito de vinho em taça de plástico. Só ele sabia o nada que era.

Certa vez, leiloou um Basquiat. Um pequeno desenho. Teceu uma longa explanação sobre o sentido da obra, impressionou, vendeu. Odiava Basquiat e aqueles desenhinhos primários. Odiava ainda mais Pollock. Quebrava porcelanas, vasos raros, tacava fogo em manuscritos, enfiava a faca em telas, cortava a cabeça de esculturas. Tudo em silêncio, na sua imaginação, sem deixar rastros.

Era extremamente preparado. Dedicou-se com afinco à arte de decorar. Decorou verbetes, textos, nomes, tintas, estilos, correlações entre artistas, períodos. Era sábio e era nada. Sem disfarces, era pathéthique. Nem o tempo gasto em discursos imaginários, nem o preparo do gesto perfeito, nada o salvava da mediocridade que sentia ao olhar-se no espelho.

Ele odiava o que fazia. Ele implicava com leiloeiros, apreciava mais os falsários. E se sentia um misto dos dois, o que aumentava a sua angústia. Sentia-se mal em desempenhar aquele papel que não escolheu. Pudesse ele, teria nascido pintor. Dos bons, mas incapaz de desenvolver um estilo. Viria ao mundo com a missão de falsificar pequenas obras (as grandes chamam atenção demais). Queria ser sorrateiro e passar para a frente a sua arte do nada. Só para ver o leiloeiro vender aquilo que não era. E alguém comprar o que imaginava ser. Como ele fazia todos os dias consigo mesmo. Sonhava ser outro para ser ele mesmo sem dilemas, sem questões. Assumidamente involuído.

Texto publicado na Revista Piauí. Julho de 2007. Vencedor do concurso “Encaixe essa frase”. Nesse texto, a frase a ser encaixada era: Ele implicava com leiloeiros, apreciava mais os falsários.