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Nunca coma a jujuba roxa

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Um texto dedicado a todos que trabalharam na F/Nazca. E aos que sonharam trabalhar lá.

Encontrei o meu e-mail de despedida da F/Nazca. Nele encontrei lembranças, particularidades e registros que são uma parte importante do que carrego de leveza na bagagem. O enigma da jujuba, ali no título, era uma frase – se não me falha a memória – do Wilson Mateos, para alertar que a roxa carregava a tabela periódica completa. Nunca mais peguei uma sequer. Já para os potes de polvilho, dispostos em salas de reunião com temperaturas de fazer a ponta do dedo cair, não havia uma regra. Eu sempre cavei em busca dos queimados. O polvilho torradinho era uma ponte aérea direto para quem eu fui na infância. Aqueles potes na sala eram pedaços do Rio, com vista para o parque.

República do Líbano, 253. Na primeira vez que eu disse o destino para o taxista, em Congonhas, falei com orgulho. Ele retrucou: doix? Deslumbrado e convidado para adentrar naquele recanto que chamei de casa, sem imaginar que ali eu ouviria a maior quantidade de nãos até aquele ponto da minha carreira. Eu tinha um adesivo da F/Nazca no carro, usava uma camiseta de quando eles “demitiram” a agência toda na mudança para o digital, absorvia tudo o que acontecia a minha volta. Até hoje, não sento na cabeceira de nenhuma mesa porque, nas salas 2 e 3, uma certa cadeira tinha dono. Já na sala 4, a escolha da cadeira era aleatória. E a sala 1? Bom, era pequenina. Um refúgio para cantarmos os grandes sucessos da Sônia Rocha (jovens, deem uma busca). Na Copa de 2002, a gente gritava a plenos pulmões:

Porque a Itália é feita de música,

a Itália é feita de flores.

Na Itália só se fala de amores,

a Itália é plena de cores.

Por falar em canções, como não lembrar do hit “O nosso amor é Lincoln”, um verdadeiro poema com o trocadilho que mais irritava o menino do preá assombrado. E por falar em Lincoln, a gente tinha uma votação para eleger o grande momento do ano em que ele estava envolvido. O Grand Prix eterno é o dia do caderno. Não vai ter graça escrito (eu sei), porque isso pressupõe uma imitação com a boca levemente mole e um assovio ao fim. Mas vale o resumo: o Lincoln aproxima-se do Nogueira e pergunta: Você por acaso tem aquele caderno do plano de saúde? Em seguida, ele se assusta com a própria frase e diz em voz alta, como quem duvida de si: Caderno? Sobre o Nogueira, eu escrevi no e-mail: Se ele tem uma foto sua, trate-o bem. Nog é o segundo exato que antecede o nascimento dos memes. Já o Misterioso Professor Quintanilha, cujo nome não revelarei, guardava recortes que eram um Google analógico da propaganda.

 Da F/Nazca, guardo superstições estranhas. Em que outro lugar o fato de ver o gambá do estacionamento seria considerado um sinal de sorte? Lá, apenas. O bicho era soturno, tímido, mas quando surgia, você jurava que teria uma ideia. Em dias de desespero, eu deixava uns polvilhos espalhados, para facilitar. Outra superstição: o macarrão do America dava azar. Já a sobremesa, Farofino, era sinal de sorte. Ainda no quesito alimentação, havia a infinita disputa entre a Portuguesa da Camelo e a Castelões, da Brás. E era fundamental escolher um time. Muitos mudavam de lado da torcida da pizza só pelo prazer de tumultuar. Importante: arroz era assunto a ser evitado durante uma época.

No e-mail, um dos itens alertava para o perigo das reuniões feitas no período da manhã. Parecia que uma aura (não é áurea que fala, cacete) reprovadora abraçava as salas e esmagava qualquer resquício de ideia. Outro grande teste de coragem era falar com pessoas de óculos escuros. Isso para um carioca era para lá de estranho, mas em São Paulo aprendi que o uso de óculos escuros pode acontecer em ambientes fechados. Vai entender. Só sei que esse pequeno objeto a cobrir olhos mortais era um indicativo de risco. Não tinha São Bono Vox, nem São Jorge Benjor, os protetores do artifício, que salvasse. Sobre reuniões: você podia medir a duração pelos origamis do Fernand. Ou medir o tempo em que você estava na agência pelas tatuagens do Armando.

Apelidos. Naquela época, eles surgiam aos montes. O Fernando Nobre virou o Praianinho só porque alguém encasquetou que ele tinha cara de quem carregava sempre uma cadeira de praia no porta-malas do carro. A Juliana Uchoa era a Sação, porque uma vez ela disse “essa ação” com um sotaque ainda mais mineiro que o habitual. A Keka ficava irritada quando falavam Kéka. E o Valmir tinha muitos apelidos guardados para disparar a qualquer momento. O mesmo Valmir que uma vez flagrou o Fabio brigando com a impressora, porque ela tinha comido o papel, e soltou a pedrada: Tá achando que só eu me fodo aqui, é? E gargalhou no final. Já a Fátima, 25 anos de F/Nazca, café impecável, reprovou uma campanha do Fabio com um simples “ih” no meio da apresentação. Lá tinha dessas coisas que pegavam até o dono de surpresa.

Quando cheguei, o endereço era o já famoso quadrado branco do parque. Sentia uma pequena inveja de não ter vivenciado o predinho. Quer dizer, era uma grande inveja mesmo. Tanto que guardo a melodia de um refrão cantado em uma festa de fim de ano, na qual eu não estava: a pele, a pele, a pele não é órgão (ritmo de canto de torcida).

Não escrevi na despedida sobre a decodificação da coçada de sobrancelha do Fabio. Nem pretendo escrever agora. Essa parte fica guardada para um outro texto que me foi pedido carinhosamente e no qual só confirmarei a conexão com a F/Nazca. Porém, deixei avisado, em 2008: Discutir com o Fabio é um jogo de xadrez. Só que você já começa em xeque-mate. Já discutir com o Edu é como ir a um show da Dercy Gonçalves. Muito palavrão e muito resmungo, apesar de ele ser o Milli Vanilli do mau humor, tudo fake. No quesito discussão, entenda: não havia gritos, show de esporro para uma plateia emudecida. Os ânimos só ficavam mais exaltados em partida de minissinuca e futebol. Já no final do e-mail, havia o item: Vai aprovar algo na segunda-feira, de manhã? Torça pelo Vasco.

O Vasco era assunto muito sério. Campo minado total. Eu pisei uma vez nessa bomba, com força. Lembro do silêncio do ambiente, seguido de uma sucessão de mensagens (o ICQ dando aquele gritinho: oh, oh…) perguntando se eu estava louco. O Fabio não falou nada, deixou o silêncio se prolongar por uma eternidade. Ele não esperava que fosse surgir uma superstição entre nós no quesito Flamengo e Vasco. Em toda final ou jogo importante que o Flamengo ganhou do Vasco, nós estávamos em cidades diferentes. Ele no Rio, eu em São Paulo. Ele em São Paulo, eu em Guarulhos, que seja. Tem funcionado para o lado do rubro-negro desde então.

No e-mail, lembrei também que as grandes histórias da agência surgiam de madrugada. E a gente invadia muito esse horário. Era uma equipe enxuta e absolutamente unida. “Ah, mas se vocês trabalhavam muito, a agência não podia ser isso tudo de bom”. O tempo é quem se encarrega de assentar as experiências e trazer um olhar equilibrado. Pelo retrovisor, digo que as amizades que fiz por lá valeriam cada segundo (Alô, grupo Originals… chora, cavaco!). Isso sem falar do clima, da chance de trabalhar e conviver com tantas pessoas talentosas. Os momentos ruins vieram também, mas são infinitamente menores quando comparados com o que tenho de boas lembranças. Sabe aquela história de “um dia você vai rir disso”? Pois então.

Um alerta que mantenho: se o Marcão Monteiro falasse metade do que ele pensa, já estava preso. Uma atualização que merece ser feita: ao mesmo tempo, é uma pena que ele não fale aquelas coisas que ficam presas em uma risada tímida. Naqueles tempos, o PowerPoint era o Oswaldo Montenegro dos programas. Fosse hoje a despedida, avisaria que o Keynote aceita tudo.

Mesmo aqui, tento não chegar ao final daquele e-mail. Desde a saída do Fabio, eu busco entender, em vão, o que leva um grupo de comunicação a sacrificar a agência que abriu uma avenida inteiramente nova na propaganda brasileira. O estilo da F/Nazca é inimitável. É um traço bem característico, sem muitas licenças, passional. Afinal, o Fabio não montava apenas uma equipe, ele construía torcidas. A gente amava, odiava, sofria e comemorava com intensidade. Só com a distância, fui procurar um equilíbrio desses sentimentos, mas ainda hoje percebo esse jeito passional.

Retorno para a nostalgia. “Você pode ter cargo, talento, dinheiro. Mas se o seu Geraldo não sabe o seu nome, você não é nada.” Esse mandamento foi fundamental para a minha sensação de pertencimento, na F/Nazca. Quando o seu Geraldo falou o meu nome, senti como se tivesse cruzado o Canal da Mancha nadando, de moleton. Era um feito inédito. O seu Geraldo gostava de chamar o carro do Renato Simões de rabecão, para a nossa alegria.

É preciso encerrar o texto, mesmo com tantas histórias a me rondar. Mas calma, que eu ainda não falei do Edu Martins, o Gudin. Ele rende um livro de causos. Um deles envolve o hábito de jogar videogames de F-1 contra o Fabio. Sim, ele tinha essa imunidade diplomática sonhada por todos. Bom, quando ele saiu da F/Nazca, caminhou até a mesa do Fabio e revelou um segredo escondido por anos: Quando entrar na curva, aperta tal botão para o carro não derrapar. Foi embora, orgulhoso, sob uma nuvem de xingamentos. Detalhe importante: eu comecei a trabalhar na mesma semana em que a Lu Rodrigues. A Lu (que não ouvia Metallica e tinha um cabelo com apelido) que casou com o Marcão Medeiros que hoje é meu dupla e sócio. Tudo encadeado.

Há 11 anos, fechei o computador logo depois do envio do e-mail e levantei da minha mesa com lágrimas de episódio do This is Us. As mesmas que vieram quando li a carta de saída do Fabio. Trabalhar na F/Nazca era bom para caralho. Essa era a frase final do e-mail de despedida. Minhas filhas nasceram quando eu estava lá e, até hoje, quando passamos em frente à agência, elas comentam algo e eu conecto diversas memórias. Desde a Ju entrando fantasiada de Minnie na criação até a Clarinha pegando as danadas das jujubas nas salas de reunião. Outra conexão. Eu e a Penélope saímos de um apartamento com vista parcial da praia direto para a São Paulo da Avenida Santo Amaro. Foi duro. A nossa labrador, Paçoca, veio na mudança e entendeu menos ainda. Sem calçadão, o jeito era andar no parque para amenizar. Um certo domingo, olhando a F/Nazca, nós ouvimos um grito: Tá virando paulista, hein? Era o Fabio da janela. O mesmo Fabio que achou a Penélope engraçada porque ela ameaçou passá-lo por um corredor polonês, caso ele não aprovasse uma ideia minha.

Em um ano tão bruto como este, escuto o áudio do menino das três conchadas de galinha quase todos os dias para recuperar a docilidade. E digo para quem decidiu esse destino da F/Nazca: ô amigo, rá, tu ratiou parça, tu ratiou muito, muito, muito. Eram três conchadas, repito, três conchadas de criatividade, a gente saiu de lá embuchado de memória boa. Pode perguntar pro Cauã, se tu quiser.

 

 

 

 

Quatro centésimos

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Pode testar no cronômetro: quatro centésimos de segundo. Bata o dedo na tecla para começar e tente parar nessa fração. Nessa tentativa, observe a velocidade com que esses centésimos passam. Faça uma correlação com o que você chama de muito ou pouco tempo. Quatro centésimos de segundo na história que conto deram origem a coisas inesperadas. Centésimos que são um salto, da dor às mais variadas conquistas.

Seletiva de natação para os Jogos Olímpicos de Atlanta. O atleta Marcos Medeiros já tinha batido o tempo que precisava no treino. Hora da prova. Ele salta, bate a mão na chegada e olha para o relógio. Quatro centésimos o tiram da Olimpíada. Nessa hora, as lesões doem mais do que nunca, ele repassa os treinos exaustivos, o acordar de madrugada, os gritos dos técnicos, o cheiro de cloro, o raspar dos pêlos e até da pele, o som da largada, a distância de casa. Nessa hora, ele determina o fim da carreira de atleta. É quando eu ganho um dupla, amigo, irmão e sócio. O que era dor, nunca esquecida, vira uma carreira que tem, naquele sistema militar de treinamento, um alicerce inquebrável. Ou quase.

O Marcão tem uma tradição que muito preocupa quem gosta dele. O susto de fim de ano. Na primeira vez, foi um acidente de moto em que ele só não bateu as botas porque, primeiro, ele não usa botas mesmo, e, depois, porque o parafuso passou a um centímetro de uma importante veia que não arrisco o nome. Nesse dia, a parte prática dele vendeu a moto a caminho do hospital. Quando cheguei à emergência, ele estava dando entrada. O médico olhou para mim e disse: “você estaria morto se o acidente tivesse sido contigo”. Não foi. O inquebrável não quebrou.

No ano retrasado, ele chegou na agência com um braço igual ao do Popeye. Eu falei: “acho que você tem que ir agora ao hospital”. Ele olhou e disse com a maior calma do mundo: “vai voltar para o lugar”. Não voltou. O susto foi tão leve que ele quis compensar. Nesse fim de ano, ele foi atropelado por um patinete na contramão da ciclovia da Faria Lima. Quatro centésimos de segundo, penso eu, impediram que um carro o atropelasse na rua. Sim, ele caiu na rua com a bicicleta, e a clávicula quebrou. Naquele momento, naquele átimo, o sinal de trânsito estava fechado. Ele já está inteiro mais uma vez. Dia desses, ele colocou um filme do Wolverine para ver aqui na sala. Achei graça.

Posso falar de detalhes fundamentais da nossa carreira aqui. Seria um tanto óbvio. Falo, então, do que não se pode imaginar ao olhar o trabalho. A mãe do Marcão e a minha se foram em um intervalo de 8 meses. Um foi o alicerce do outro. É mole ser parceiro no palco de um GP, difícil é uma dupla resistir ao silêncio do outro, a não produtividade, à dor. Quando ele não conseguia sequer pensar, eu trabalhava em dobro. Quando era eu que não me movia, ele fazia o mesmo. Quem estava de fora não percebia muito. Nada foi combinado, apenas foi assim.

Essa inteligência emocional nos faz saber quando qual dos dois deve ir àquela reunião. Nem é preciso falar. Não foram poucas as vezes que ele disse: “vai nadar, essa eu toco”. Essa sintonia já foi questionada por pessoas da equipe. “Vocês ensaiaram o discurso” é o que ouvimos. Não. Em momentos distintos, falamos a mesma coisa sobre uma ideia ou sobre uma postura. É zero ensaio, e muito conhecimento.

Há uma brincadeira que ele gosta de repetir: “se você fosse do meu tamanho, ia dar cagada”. Ele sabe que quando eu tenho raiva não é coisa pouca. Eu vou estalar o pescoço, girar a língua com a boca fechada e soltar pedrada. Já aconteceu de eu estar estalando o pescoço e ele tomar a frente. Uma curiosidade aqui: um cara que tinha problemas com nós dois um dia veio tirar satisfação apenas com a minha pessoa. Eu teria feito o mesmo no lugar dele. Com o tempo, aprendi a usar (o verbo é esse mesmo) essa figura de proteção. Ele é o meu Urso Judeu de Bastardos Inglórios. Tem hora que eu penso: “tem certeza de que você quer que eu chame o Urso?”.

Quando implantamos a agência, ouvi: “sociedade com amigo dá merda”. Já deu. Não uma merda grande, mas atritos que foram resolvidos com uma conversa para aparar as poucas arestas que restavam. Somos um monstro de duas cabeças. Vale morder os outros, mas sem se atacar. É assim que tem funcionado.

Ele é tosco, verdade seja dita. Em um jantar de harmonização, ele terminou a taça de vinho antes de o prato ter chegado. O maître ficou indignado. Sem carboidratos, ele vira um bicho. A galera daqui é testemunha de uma dieta que, quando chegou ao fim, chamamos de momento de pacificação. Porém, no geral, é só tamanho mesmo. Ele é um Sulley. Era para assustar as criancinhas, mas o efeito é contrário.

Ele é obsessivo. Prometeu que desenharia mais, faz um desenho encrenca por dia. Colocou na cabeça que vai aprender a tocar guitarra, logo mais vai estar tirando solos do Stevie Ray Vaughan. Decidiu que a fotografia vai ser o seu trabalho na aposentadoria, já descolou uma viagem para fazer um curso na Índia. Ele é o seu próprio treinador.

Minhas filhas o chamam de Cacão, o que dá noção do tempo que estamos nessa estrada. E do carinho construído. E aqui, volto a falar de tempo como quem procura um fechamento do texto. Quatro centésimos. Olhe de novo no cronômetro. Esses centésimos deram a ele uma nova carreira, uma família linda, um lugar para o qual ele não precisa olhar para o placar. Quatro centésimos. Menos que um tic. O tempo que eu precisei para ganhar um dupla, um amigo, um irmão, um sócio. E – por que não dizer? – um segurança.

 

 

 

 

Vini e o chocolate escondido na gaveta.

Um dia a minha filha indagou: pai, eu nunca sei quando você está falando sério ou ironizando. A irmã respondeu: dessa vez era ironia. E eu falei: é um treino para a vida.

Corte abrupto de narrativa.

Eu e o Marcão conversamos com o Chuck Porter por telefone muito antes do começo da CP+B Brasil. Na ligação, o Chuck falou poucas coisas (como de costume). Entre elas: vamos seguir em frente; preciso de um business plan. Travamos. Como fazer um business plan?

Nesse momento da história, surge a figura do Vinicius Reis. Ou melhor: o Vini. Um amigo de longa data do Marcão que segundo consta nos alfarrábios publicitários tinha o apelido de presidente até quando era estagiário. Eu não o conhecia. O Vini arrumou o tal plano de negócios, voamos para Miami e a agência nasceu.

Vini era uma ponta, eu era a outra, Marcão no meio equilibrava as forças. A sociedade funcionava assim. Se fosse muito para o meu lado, caos. Se fosse muito para o lado do Vini, obsessão por detalhes. E a disputa acontecia. Quando  mais crica ele era, mais eu não seguia as regras. Quanto mais eu não seguia as regras, bem, você entendeu. Do jeito que estava sendo desenhado, tinha tudo para ganhar o prêmio de cabo de guerra mais estúpido do ano.

Marcão já cansado de fazer o papel de juiz, as duas pontas extenuadas, soltamos a corda. E começamos a nos entender. O que me leva a essa reflexão agora no aniversário da coisinha mais obsessiva do mundo, o Vini.

Em geral, fala-se muito dos caras da criação. E pouco dos caras de negócio. Serei sucinto aqui: sem o Vini, a gente estaria falido ou preso. Não havia outra hipótese. Ele é o cara que vai abrindo a picada na mata fechada, eu e o Marcão chegamos na sequência arrancando um erva daninha aqui e ali e tentando fazer os sinais para que as pessoas prefiram essa estrada. O trabalho dele é mais árduo que o nosso, acredite. Se não acredita, tente acompanhar um dia na agenda dele de ligações, anotações, pensamentos sobre como crescer e onde erramos. Um exemplo disso? Quando estávamos na obra da agência, ele pediu para a gente checar o que parecia errado. Com esforço, anotamos 27 falhas. Ele chegou em 154. E ainda provou que o teto do andar era levemente torto.

O Vini entende muito de criação. A gente aprendeu com ele a entender sobre o negócio. E a respeitar as decisões dele. Eu já começo a semana sabendo que vou ouvir um “trânsito do Morumbi tá foda”, “puta que pariu, sócios”, “que semana, hein?”, “Má, gatinha, depois te ligo”. Eu sei que ele não vai me ouvir na primeira vez e vai repetir o que eu falei como se fosse algo inédito logo depois. Que vai procurar erro de digitação em cada apresentação. Ele circula pelo mesmo assunto até ter certeza que não há nada equivocado. É o nosso João Gilberto cantando “O Pato” em looping, só que o gato não pula da janela nessa história.

No fim do ano passado, eu o chamei de tutor em um post. Muita gente viu ironia. Volto, então, às minhas filhas. Eu estava falando sério daquela vez. O Vini foi o meu treinador para uma vida de empresário para a qual eu não estava preparado. Até sapato ele me fez comprar. Nessa sociedade, só temo pelas comidas que deixamos na mesa. Toda a classe e estilo do nosso V.R., o Vila Romana Vinicius Reis, vai embora quando se trata de roubar um quitute. Feliz aniversário, Bibicius, Que a vida seja repleta de gavetas com chocolates escondidos.

 

 

Com prazer vale dois

O nadador francês Florent Manaudou não gosta de treinar. O prazer dele é ganhar. Bastam duas frases para evidenciar uma certa incompatibilidade entre a ambição do atleta e a dedicação necessária para atingir o objetivo. Manaudou evoca o espírito do baixinho Romário em um esporte individual, veste o traje impermeável da marra e cria uma equação de enlouquecer qualquer técnico. Só que não satisfeito, o francês honra com as suas palavras. Ele ganha.

Nos Jogos Olímpicos de 2012 em Londres, Florent chegou à final dos 50m livre para ser aquele coadjuvante bacana que acena para a torcida, mergulha e valida o espírito esportivo ao cumprimentar o campeão (que já arrancou a touca, os óculos e urra socando a água). O francês que estava na raia 7, o que torna o feito ainda mais incrível, obteve o melhor tempo de reação na largada e abocanhou a prova, deixando Cesar Cielo em terceiro. Em 2016, os papéis se inverteram,  Manaudou chegou ao Rio como o favorito e perdeu a final por um centésimo de segundo. Reformulando: levou a prata, o que para ele não foi o suficiente. Florent anunciou que vai dar um tempo das piscinas, diminuir radicalmente a intensidade dos treinos. Ele tem apenas 26 anos.

Alex Pussieldi, a voz da natação na transmissão dos Jogos, escreveu em seu blog sobre a precoce saída de cena. O título da matéria sintetiza: quando o prazer de ganhar é maior do que o gosto pelo esporte. Ou como Alex reafirma quase ao fim, Manaudou sucumbiu à falta de amor pela natação. O talento do francês é tão brutal que lhe permitiu liderar a elite por anos, mas seu estilo de nado custa caro aos músculos, às articulações, dói. Aí, você adiciona à receita um punhado de resistência aos treinos, uma pitada de brigas com o técnico e voilá: ele perdeu o tesão de nadar. O caminho não importava mais, nem o destino.

No início desse ano, a jornalista gastronômica Alexandra Forbes abordou o suicídio do chef suíço Benoît Violier em um artigo denso, carregado dos dilemas que os renomados chefs enfrentam. Se por um lado, os rankings e guias podem alçar um profissional ao estrelato, por outro eles carregam a pressão, a tensão e uma carga emocional gigantesca para estar sempre no topo. À frente do premiadíssimo Restaurant de l’Hôtel de Ville, Benoít repetiu o ato trágico do chef Bernard Loiseau que em 2003 não suportou a possibilidade de ver o seu restaurante perder uma estrela (e, como consequência, uma margem alta de clientes) e deu fim a uma carreira brilhante. Vem do delicado e magnífico filme “Ratatouille”, da Pixar, uma homenagem a Loiseau. Puxando na memória e no Google, relembro que o ratinho Remy tinha como inspiração o chef Gusteau, que faleceu de tristeza após uma crítica do severo Anton Ego. Sem o bordão de Gusteau que repetia que qualquer um pode cozinhar, Remy não poderia sonhar. E não sonhar é render-se aos pesadelos.

Florent Manaudou vai dedicar uma parte do seu tempo ao handebol em busca do prazer do esporte e de uma distância da pressão da mídia. Entendo sua angústia e respeito a sua coragem que a caixa de comentários, o ralo do mundo, diz não existir mais. Alguns bons profissionais saíram das agências por motivo semelhante e quase todos reencontraram um sorriso que parecia anestesiado há tempos atrás. Um deles parece ter criado uma resistência única aos fios brancos.

Dramatizo o exemplo dos chefs porque há como morrer aos poucos. Uma receita infalível é trabalhar sem prazer, fazendo de todos dias uma eterna segunda-feira. Como um noticiário que encerra a sua transmissão com a revoada de passarinhos para que ainda possamos sonhar, recorro ao Remy. Do mesmo jeito que o crítico volta à infância ao provar um singelo prato de ratatouille, é fundamental buscar a razão pela qual escolhemos o nosso trabalho. E torço para que ela seja sempre mais pessoal do que balizada pelo crivo do outro.

Retidão não aceita desaforo

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Não sou metódico o suficiente para carregar um caderno e ir anotando as coisas ao longo do tempo, nem desorganizado o bastante para perder o que eu acho interessante. Entre post-its opacos, fotos de livros, artigos, links bookmarqueados e notas arquivadas no celular, invariavelmente, sou impactado por algo que julgava esquecido. No dia 3 de Abril de 2014, registrei um debate entre John Hegarty, David Droga e Dave Trott em torno da coragem na publicidade. Resgato desse fantástico encontro, algumas frases:

“Agências não tomam grandes decisões, elas fazem recomendações. Quando falamos sobre agências serem corajosas, não somos, os clientes é que são.” Sir John Hegarty.

 “Coragem é colocar as suas crenças acima do instinto de auto-preservação.” David Droga.

 “Coragem é levar o negócio (da agência e do cliente) para lugares perigosos por uma boa razão”. Esta, infelizmente, sem o autor confirmando a ausência de método por essas bandas de cá.

 Já no dia 11 de setembro de 2016, de uma rara conversa com Isay Weinfeld no Festival do Clube, reservei com cuidado uns muitos aprendizados. Entre tantas coisas, Isay falou sobre a relação de confiança que precisa ser estabelecida com o cliente e o quanto ele preza por cada detalhe:

“Às vezes se esquece que a obra é para quem pediu, não para você. Eu não projeto para mim, projeto para o outro.”

“95% do meu trabalho é psicanálise. Os outros 5% são sobre pensar em tudo o que foi dito”.

Em 2002, sem mês específico, anotei em um arquivo de Word sobre a recusa de um tatuador. Segue o evento reescrito com tintas de hoje: Certo dia, na hora do almoço, adentrei em um estúdio de tatuagem com um colega de trabalho. Eu sabia exatamente o que queria, ele não. O tatuador pediu para que cada um descrevesse o que gostaria de fazer e, em seguida, observou calmamente os desenhos já existentes nos corpos daqueles estranhos. Por um tempo, ele pareceu absorto, distante e, enfim, deu o seu parecer: tatuo você na semana que vem. Já para o cidadão ao meu lado, ele não hesitou: não vou tatuar você. O meu amigo inflamou-se de raiva, tentou encontrar uma resposta para aquela sentença. No afã, acabou dando uma carteirada: mas eu vou pagar. E o profissional já calejado por anos de estúdio, retrucou: um trabalho que eu não acho coerente dói mais em mim do que em você, prefiro não fazer.

Distantes no tempo e nos arquivos, enxergo nesses eventos pontos que se conectam em uma espinha dorsal. Na frase de John Hegarty há uma desconstrução inusitada e verdadeira. Coragem no Keynote, todo mundo tem, mas na hora de pagar a conta, a decisão é de um lado. Respinga em todos? Respinga, mas a tinta pesa mais para o cliente. É uma reflexão que nos ajuda a rebalancear o ego. David Droga abre o leque da bravura e inclui as duas partes. É necessário, sim, enfrentar esse instinto que pode ser o do bônus garantido no fim do ano, da cadeira confortável e do salário alto, dos vícios em apostar nos mesmos formatos, nas fórmulas que deram certo para o concorrente. Coragem é sobre andar por caminhos não trilhados lembra o anônimo que estava lá e eu não anotei.

Do quase silencioso Isay, retiro a observação sobre ficar atento para que o ego de quem faz não se sobressaia ao trabalho pedido. Não criamos para nós mesmos, não somos nós que habitaremos aquele ambiente, que vestiremos aquela campanha. A boa relação parte do entendimento verdadeiro sobre o outro, do que ele precisa e carrega junto à possibilidade do não.

Do tatuador, o rigor que sublinha a importância de manter a coerência sobre aquilo que você acredita ferir os seus princípios. Não é seguir a corrente, usar uma ética descartável, pegar todo e qualquer trabalho visando apenas faturar. Das anotações, percebo que retidão também não aceita desaforo.

 

 

Uma carta para o Mauro, um telegrama para o Eduardo

Meu caro Mauro,

uma mensagem de voz pelo WhatsApp talvez resolvesse, quiçá um antigo SMS, mas era muita coisa nessa caixola, caraminholas remexidas pelo seu último artigo, sobre a Menina da Vale. Em seu ótimo texto, você toca nas feridas, trabalha o acontecimento com cuidado e ainda indica uma saída esperançosa. Só que tem uma passagem que me levou a um questionamento:

“Nos dias de hoje, as pessoas não compram você pelo que você vende de você mesmo, mas sim pelo que você faz e entrega. Aceitemos ou não, mas títulos, currículos e medalhas não têm mais valor como antigamente”.

Torço muito para que isso seja uma verdade a curto prazo, mas divido com você algumas dúvidas sobre os profissionais do auto-manifesto.

Outro dia quase engasguei com o café, veja você. Estava eu a ler um jornal quando descobri que assessora de casamento agora é chamada de wedding planner. Desde então, procuro diferenciar uma função da outra. Há alguma distinção? Ou é apenas uma vestimenta chique-estaile ? Anos atrás, dei de frente com um cargo mezzo pomposo, mezzo bobo, algo ao estilo de “ninja of concept”. Por acaso, tive a chance de perguntar ao diretor do setor, o motivo dele deixar um funcionário usar aquela nomenclatura. E o diretor, sem titubear, respondeu: porque ele acredita.

Não sou contra anglicismos e descobri que lá nos Estados Unidos, há quem também questione essas invencionices. Fiz uma mistureba de coisas que achei para exemplificar como é possível complicar sem aprofundar: só um Paradigm Breaker com uma paixão por resolver problemas pode encontrar essa saída. Vamos focar em um modus-operandi indelével para colaborativamente criarmos uma estratégia que funcione como um trigger que mais que uma fagulha, é um questionamento da semiótica por trás da marca. Nesse cenário, um Head of Future Trends, adapta-se conectando os pontos ainda inexistentes entre demanda e o que está a se formar. Juro, não entendi nada. Mas se cabe outra confissão, na minha área, é comum pegar carona na ficha técnica e construir um personagem premiado. É aquele ditado: o sucesso tem vários pais, o fracasso é orfão.

Na série Cooked, o Michael Pollan diz-se impressionado com a capacidade que temos em complicar um churrasco. Carvão, fogo, carne e sal não são artigos de uma ciência complexa, nem de uma arte intocável. Uso esse paralelo nos perfis rebuscados do Linkedin e funciona.

Nesse universo da inflada molecular de currículos, ainda há pouco Ferran Adriá para muita espuma. Percebo que na ânsia de gerar caldo, o pessoal confunde complexidade da comunicação com complicação. Revelo, pois, uma pequena mania quando vou a restaurantes. Digamos que seja um italiano. Na primeira visita, eu peço invariavelmente uma receita clássica. Um molho ao sugo, um pesto, um carbonara. Porque se o cara errar o básico, não vai ser o cogumelo selvagem com alcachofra que vai salvar.

Mauro, estou na torcida para que as suas palavras sejam mais certeiras que as minhas cismas. O seu texto carrega uma esperança de que há uma mudança em curso e é nela que me apego. Afinal, ninjas e complicadores costumam sumir na fumaça. Grande abraço.  ______________________________________

Caro Eduardo Tracanella,

a sua questão de 13 de maio de 2016, abre aspas, se o nosso mercado fosse um país, ele seria o país que a gente tanto sonha?, fecha aspas, continua a ecoar.

Saudações. A.K.

 

O artigo do MauroSegura:  http://www.meioemensagem.com.br/home/opiniao/2016/09/05/a-bel-pesce-em-cada-um-de-nos.html

O artigo do Eduardo Tracanella:

Cuspindo para cima

 

 

 

 

 

 

Dados sem uma visão humana são apenas dados

Dos anos de terapia, há um aprendizado que tornou-se um ilustre e aguardado visitante. De quando em quando, lá vem ele bater na porta das minhas certezas. Toc toc. E diz ele bem baixinho, com uma voz feminina carregada de sotaque paulistano: quando você joga muito luz sobre um único ponto, cria uma enorme área de sombra. E, às vezes, a solução está na sombra. Esse pensamento me acompanha nos mais variados assuntos. Não foi uma surpresa, portanto, que ao ler a frágil explicação para a queda da ciclovia do Rio, ele tenha surgido novamente.

Chocado pela obviedade da tragédia, vinha eu procurando mais informações sobre o fato, quando passei os olhos nesta nota publicada pelo Ancelmo Gois. “Quando desabou o viaduto da Paulo de Frontin, em 1971, matando 26 pessoas, o escritor Autran Dourado (1926-2012) disse numa entrevista ao “JB”:

— Se os engenheiros que o projetaram tivessem lido Machado de Assis não errariam nos cálculos, porque saberiam pensar. E teriam uma formação humanista.” Meu pensamento tinha agora uma nova companhia.

O laudo preliminar do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) indica que a ciclovia caiu por um erro primário. Não havia um cálculo estrutural prevendo que a ação de uma onda ascendente poderia atingir a plataforma. Traduzindo: os “peritos” não imaginaram que algumas ondas batem na pedra e sobem com força. Eles ticaram os itens que, em uma visão limitada, deixariam a obra de pé: vigas, ok; capacidade de sustentar uma força de cima para baixo, ok; impacto de uma onda nos pilares, ok. Se tivessem uma visão humanista, não precisariam nem calcular. Bastaria perguntar para os pescadores da região, para os bodyboarders da Laje do Sheraton, para os moradores do condomínio Ladeira das Yucas, para qualquer carioca que tenha parado para admirar uma ressaca no Leblon. Creio que todos os personagens diriam: as ondas sobem. Deixo de fora dessa parábola, a incompetência e a bandalheira em obras públicas.

Anos atrás, meu braço esquerdo entrou em uma dormência contínua (eu sou canhoto). Um renomado ortopedista solicitou um sem-número de ressonâncias. No resultado dos exames, porém, não havia nada que justificasse aquela dor. O especialista, do alto de sua sabedoria inabalável, receitou anti-inflamatório e fisioterapia. Dever cumprido, próximo paciente. Pois bem, o diagnóstico era síndrome de Burnout. Focado no único ponto de luz, o ortopedista não observou o todo. Não me fez uma questão sequer além da tríade: escápula-ombro-cotovelo. Quem olhou foi o meu clínico geral e a mesma terapeuta que me ensinou umas tantas coisas. Para ambos, a resposta estava na sombra, na essência de que somos complexos.

Sem uma visão humana, ondas destroem, braços dormem, algoritmos erram. Nessa corrida pelo Big Data, pela ciência exata da mídia programática, o grande perigo que as marcas correm está na possível ausência do valor emocional agregado. Muitos peritos, na ânsia de defenderem o seu terreno, têm deixado de lado a emoção como fator preponderante da equação. Números, números, números, alguns dizem. E dados que dispensam a subjetividade do ser humano são apenas dados.

Na grande tragédia, o descaso. No pequeno evento particular, o ego do especialista. Na certeza de que basta ler os algoritmos que o resultado vem, a cegueira. De tudo isso, um novo velho aprendizado. Na possibilidade, converse com o pescador, leia Machado de Assis, olhe o conjunto inteiro, ande pela sombra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre aquela série: Sad Men

sadmen

Uma toalha esticada no chão. Você coloca o pé sobre a mesma e com as pontas dos dedos tem que puxá-la devagar na sua direção. Parece entediante? Agora, repita essa movimento em 5 séries de 15, todos os dias, por 5 semanas. Esse é apenas um dos exercícios para a recuperação de uma fratura de fíbula. Pode ser mais chato? Claro. Esticar elástico, ficar sobre um troço chamado bosu, fingir que está patinando lateralmente, essas coisas que a gente não vê no canal Off. Poucas atividades podem ser tão mortais para a diversão quanto uma sessão de fisioterapia. Reunião de condomínio, grupo de mães no WhatsApp  talvez empatem. Para piorar, o ambiente é cheio de macas, aparelhos de choque, cordas e os gritos são constantes. Bom, todo esse panorama terrorista para dizer que contrariando as regras, há uma clínica de fisioterapia que tem um clima mais divertido do que muita empresa por aí.

A senha do Wi-Fi já guarda uma pequena piada: cotovelo. Porque é com essa parte tão delicada do corpo, que o Fábio Sperling costuma tratar os seus pacientes. Quando ele sabe que alguém vai gritar, já avisa: “pagaram couvert artístico? O show vai começar”. Todo mundo ri, até o coitado do português que gritava clemência, por Jesus. A dose de ironia é na medida. Guardo, inclusive, a impressão de que tem gente que se contunde na pelada só para voltar lá. E o principal segredo dessa atmosfera é bem simples: todos ali levam o trabalho a sério, mas nunca se levam a sério.

Pulo da maca direto para a pergunta: você admira o Google? Vou tomar um sim como resposta e falar rasteiramente de Chade-Meng Tan, engenheiro do Google e um dos criadores do programa “Search Inside Yourself”.  Esse programa parte do princípio que inteligência emocional pode ser treinada (Daniel Goleman assina embaixo) e envolve passos relativamente simples. O primeiro é o exercício da atenção através da meditação. No vídeo disponível no Youtube, podemos ver Chade pedindo para a plateia focar na respiração por meros 10 segundos. Segundo ele, a mente é como uma bandeira sacudindo ao vento do estresse. E a meditação é o mastro que permite que você balance sem perder a estabilidade.

O segundo passo é o autoconhecimento, a habilidade de reconhecer a emoção no momento em que ela surge, quando cessa e compreender as pequenas mudanças entre esses tempos. Olhar para você de uma maneira mais clara para exercer, através desse alerta, a opção de escolha. Exemplo: você sente que está com raiva e escolhe ou não seguir com ela. A ideia é abrir mais espaço para reter as boas emoções, as que valem a pena. O terceiro passo é sobre criar bons hábitos mentais, sobre desejar verdadeiramente a felicidade dos outros. Para Chade, demonstrar afeto e empatia é uma maneira de exercer liderança, de criar elos mais profundos com a equipe. Ele cita um estudo que mostra que ser legal com as pessoas à volta surte efeito até em um ambiente ostensivo como a marinha americana.

Seguindo pelo rasinho do assunto, em Harvard, um dos cursos mais disputados tem nome: Psicologia Positiva. Veja bem, em Harvard. Tal Ben-Shahar, o dono dessa cadeira, ainda ministra um curso sobre Psicologia de Liderança. Vale a pesquisa. Permita-me sublinhar dois tópicos: a felicidade reside na intersecção entre prazer e significado; dê a si mesmo a permissão de ser humano.

Ora, se uma clínica de fisioterapia encontrou uma maneira de ser divertida, se uma das empresas mais inovadoras do mundo tem um funcionário focado em bem-estar, se Harvard percebeu que a noção de sucesso é diferente para os mais jovens, algo realmente está acontecendo. A nossa área é a Humanas, o mercado é mais sobre pessoas do que algoritmos. Por Jesus, clemência. Se a gente defende tanto criatividade, porque seguir por caminhos de comando já percorridos? Respira 10 segundos e pensa.

 

 

 

 

 

 

 

 

Pequenas anotações que não viraram artigo

  • Muito se falou sobre a conquista de Adriano de Souza. Há, porém, uma cena que não me foge da memória e foi quase um detalhe entre tantas imagens marcantes. No instante em que Mineirinho rema para a praia, já consagrado como campeão mundial, o lendário e eternamente jovem Ricardo Bocão mergulha no mar com um sorriso que valida o apelido. A conquista não era sua, mas ele pavimentou uma longa estrada ao lado de outros grandes nomes do surfe. A alegria genuína de Bocão me faz refletir sobre as gerações que se complementam. No mar, procuramos honrar quem veio antes. E os antecessores costumam manter esse respeito pelos que trilham novos caminhos. Sem Bocão, sem o “Realce”, sem a trilha de “Girl Afraid”, dificilmente haveria Mineirinho. Sem Rico de Souza, Medina teria mais dificuldades. Sem Fabio Gouveia, Filipe Toledo não alçaria vôos tão longos. Deveria ser assim na nossa área. Raramente é. Primeiro, desqualificamos. Em seguida, nos auto-afirmamos. Talvez seja essa uma das razões para que poucas agências pensem em sucessão. O holofote nasce e morre em nós mesmos.
  • Na cabeça de Mineirinho, ele deveria ser o primeiro campeão mundial brasileiro. Tentou por 9 anos, sem sucesso. Gabriel Medina cortou o seu caminho, com talento, sem pedir licença. No ano seguinte, o menino de Maresias soou sem foco no início do circuito. Adriano, por sua vez, treinou em dobro e mudou a sua tática. Análises? O sucesso de um fez o sonho do outro tornar-se possível. Apenas talento não faz um vencedor. E, acima de tudo, frustração, quando não nos trava, gera criatividade.
  • Gabriel Medina está concentrado para a sua bateria. Logo atrás, percebo a figura de Marcello Serpa. Ele está de bermuda, camiseta e Havaianas. Com uma postura leve, ele parece olhar para o mar como quem confirma para si mesmo: eu consegui, era isso, então.
  • Quando estive ao lado de uma conquista de GP de Press em Cannes, o mesmo Serpa chamou de canto em meio à festa e disse em tom profético: “agora, vocês terão as alegrias e decepções desse prêmio”. Eu e Marcão nos entreolhamos sem entender. Era uma água jogada no chopp já quente. Minutos depois, um amigo passou e disse: “que sorte, hein?”. Quando a vida parece doce, algumas lições amargas são necessárias. Enquanto criativos, nós não nos completamos.
  • Comecei 2016 revendo “Jiro Dreams of Sushi”. Se pegar o conceito de sincronicidade de Jung, posso afirmar que não foi mera casualidade. Jiro Ono, 85 anos, melhor sushi chef do mundo, consagrado com 3 estrelas Michellin. O que esse senhor nos ensina? Que há sempre espaço para melhorar, para aprender mais, para desenvolver novas técnicas. Um sushi de polvo na textura perfeita, por exemplo, é um trabalho de décadas. Curioso. Porque com alguns Leões, tem gente que caga regras em praça pública, folcloriza o próprio release, cava elogio e fica lendo os comentários à espera de um “gênio”.
  • Os verdadeiros gênios estão fazendo algo maior. Buscando a cura da malária, uma lente de contato que mede glicose, uma forma de inconformismo tão impactante e bela quanto à criada por David Bowie. (Obrigado por me lembrar, Peu).
  • Claude Troisgros revelou em um programa que o seu pai, um dos revolucionários da Nouvelle Cuisine, sempre lhe dizia (acho que era isso): “meu filho, não importa quantas estrelas o seu restaurante tenha, lembre-se: você é um cozinheiro”.
  • Até quando acharemos normal a expressão “descer a chibata na equipe”? A figura do senhor do engenho nos rodeia.
  • Comecei 2016 com 3 bermudas, 4 camisetas, 1 par de sandálias, livros e a família em volta. Estou próximo ao mar porque ele me relembra a importância do respeito às regras básicas. Eu sou um pai, marido, amigo de poucos, publicitário, tentando ser criativo. É isso.
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Complicação pretensamente embasada também é complicação

Quando eu falo preto, o que você responde? Se eu digo manhã, que outra palavra lhe surge repentinamente? Antes de seguir, é de bom tom confessar que furtei essas questões durante a palestra mais rápida que já presenciei. Uma conversa com Pete Favat, CCO da Deutsch Los Angeles, no Ciclope Festival, o melhor menor festival de publicidade do mundo. Com essas singelas perguntas, ele capturou todas as atenções do auditório em segundos. A platéia respondeu: branco e noite como era esperado. E a partir de então, estávamos todos de mãos dadas com Pete para um passeio em busca de um inimigo.

Em algum momento, falar sobre publicidade ficou extremamente complexo. Surgiram especialistas de todos os cantos, cada um defendendo a sua palavra da vez como a forma de construir marcas. São teóricos, muitas vezes, sem nenhum case de sucesso de próprio punho. Na falta de autoria, vivem de suposições, de jogar bombas de fumaça colorida nas apresentações. Bob Hoffman divide o mundo de hoje entre dois tipos de profissionais: simplificadores e complicadores. Enquanto simplificadores focam no essencial, complicadores não conseguem distinguir pertinência de irrelevância. Eles misturam tudo em um imenso bolo e criam camadas densas de ppt e regras para cada um dos ingredientes. No fundo, o complicador morre de medo de resumo porque não conseguiria resumir o trabalho, nem a si mesmo. Ele é um briefing de nove páginas.

Pete Favat desenhou a sua palestra sob à ótica da simplicidade. Voltando às questões, repare no detalhe fundamental de que não pensamos em cinza, nem em tarde como respostas. Por que? Bom, segundo Pete, engajamento raramente acontece no meio. ‎O meio é aquele dia nublado, escondido com medo de ser sol, sem peito para virar temporal, é o morno, o sorvete de baunilha. Em um mundo cercado de mensagens, relevância é procurar a área de tensão quando a maioria prefere a comodidade de ser paisagem. Pete defende que as pessoas não se importam com o que você (clientes e agências) têm a dizer. Ninguém em sã consciência acorda pensando: hoje eu vou me engajar com essa marca para valer. Vou sair distribuindo likes e corações e, em seguida, vou compartilhar com os amigos. Para chamar atenção é preciso aceitar riscos. David Droga costuma perguntar para a equipe quando lhe apresentam um trabalho: por que alguém daria a mínima para essa ideia? Nas entrelinhas, ele está a clamar por relevância,  sentido e uma resposta simples.

Todas as grandes histórias têm um protagonista e um antagonista. Logo abaixo dessa frase, estavam as capas de alguns livros recordistas de vendas: “1984”, “Harry Potter”, “Código da Vinci”. Pete Favat apresentou esse slide e ressaltou que sem Darth Vader, não haveria a polaridade necessária para que “Guerra nas Estrelas” fosse um sucesso. Sem aquela barbatana de tubarão e o mar tingido de vermelho, Steven Spielberg teria realizado mais um filme insosso sobre as férias na praia. Sem tensão há menos atenção.

Próximo slide: grandes trabalhos têm um inimigo declarado. Para sustentar a tese, Pete Favat exibiu a célebre foto do jovem Steve Jobs mostrando o dedo do meio para um letreiro da IBM. Na sequência, revelou alguns sucessos e seus rivais. Para Chipotle, o adversário são os produtos químicos nos alimentos. Para Domino’s Pizza, o inimigo dormia ao lado e era a qualidade da sua receita. Para a campanha Truth, as mentiras da indústria de tabaco. Para a Apple, o conformismo e o tédio.

A palestra durou 14 minutos, com menos de 20 slides. Pete Favat é um simplificador. Sem enrolações, ele deixou o auditório com uma mensagem clara: encontre o seu inimigo. Parece fácil, mas exige coragem e a noção de quem nem tudo é previsível. Não há cálculos, nem teorias que garantam uma rota certeira rumo ao sucesso. Meu inimigo declarado é a complicação pretensamente embasada.