Arquivo mensal: janeiro 2019

Quatro centésimos

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Pode testar no cronômetro: quatro centésimos de segundo. Bata o dedo na tecla para começar e tente parar nessa fração. Nessa tentativa, observe a velocidade com que esses centésimos passam. Faça uma correlação com o que você chama de muito ou pouco tempo. Quatro centésimos de segundo na história que conto deram origem a coisas inesperadas. Centésimos que são um salto, da dor às mais variadas conquistas.

Seletiva de natação para os Jogos Olímpicos de Atlanta. O atleta Marcos Medeiros já tinha batido o tempo que precisava no treino. Hora da prova. Ele salta, bate a mão na chegada e olha para o relógio. Quatro centésimos o tiram da Olimpíada. Nessa hora, as lesões doem mais do que nunca, ele repassa os treinos exaustivos, o acordar de madrugada, os gritos dos técnicos, o cheiro de cloro, o raspar dos pêlos e até da pele, o som da largada, a distância de casa. Nessa hora, ele determina o fim da carreira de atleta. É quando eu ganho um dupla, amigo, irmão e sócio. O que era dor, nunca esquecida, vira uma carreira que tem, naquele sistema militar de treinamento, um alicerce inquebrável. Ou quase.

O Marcão tem uma tradição que muito preocupa quem gosta dele. O susto de fim de ano. Na primeira vez, foi um acidente de moto em que ele só não bateu as botas porque, primeiro, ele não usa botas mesmo, e, depois, porque o parafuso passou a um centímetro de uma importante veia que não arrisco o nome. Nesse dia, a parte prática dele vendeu a moto a caminho do hospital. Quando cheguei à emergência, ele estava dando entrada. O médico olhou para mim e disse: “você estaria morto se o acidente tivesse sido contigo”. Não foi. O inquebrável não quebrou.

No ano retrasado, ele chegou na agência com um braço igual ao do Popeye. Eu falei: “acho que você tem que ir agora ao hospital”. Ele olhou e disse com a maior calma do mundo: “vai voltar para o lugar”. Não voltou. O susto foi tão leve que ele quis compensar. Nesse fim de ano, ele foi atropelado por um patinete na contramão da ciclovia da Faria Lima. Quatro centésimos de segundo, penso eu, impediram que um carro o atropelasse na rua. Sim, ele caiu na rua com a bicicleta, e a clávicula quebrou. Naquele momento, naquele átimo, o sinal de trânsito estava fechado. Ele já está inteiro mais uma vez. Dia desses, ele colocou um filme do Wolverine para ver aqui na sala. Achei graça.

Posso falar de detalhes fundamentais da nossa carreira aqui. Seria um tanto óbvio. Falo, então, do que não se pode imaginar ao olhar o trabalho. A mãe do Marcão e a minha se foram em um intervalo de 8 meses. Um foi o alicerce do outro. É mole ser parceiro no palco de um GP, difícil é uma dupla resistir ao silêncio do outro, a não produtividade, à dor. Quando ele não conseguia sequer pensar, eu trabalhava em dobro. Quando era eu que não me movia, ele fazia o mesmo. Quem estava de fora não percebia muito. Nada foi combinado, apenas foi assim.

Essa inteligência emocional nos faz saber quando qual dos dois deve ir àquela reunião. Nem é preciso falar. Não foram poucas as vezes que ele disse: “vai nadar, essa eu toco”. Essa sintonia já foi questionada por pessoas da equipe. “Vocês ensaiaram o discurso” é o que ouvimos. Não. Em momentos distintos, falamos a mesma coisa sobre uma ideia ou sobre uma postura. É zero ensaio, e muito conhecimento.

Há uma brincadeira que ele gosta de repetir: “se você fosse do meu tamanho, ia dar cagada”. Ele sabe que quando eu tenho raiva não é coisa pouca. Eu vou estalar o pescoço, girar a língua com a boca fechada e soltar pedrada. Já aconteceu de eu estar estalando o pescoço e ele tomar a frente. Uma curiosidade aqui: um cara que tinha problemas com nós dois um dia veio tirar satisfação apenas com a minha pessoa. Eu teria feito o mesmo no lugar dele. Com o tempo, aprendi a usar (o verbo é esse mesmo) essa figura de proteção. Ele é o meu Urso Judeu de Bastardos Inglórios. Tem hora que eu penso: “tem certeza de que você quer que eu chame o Urso?”.

Quando implantamos a agência, ouvi: “sociedade com amigo dá merda”. Já deu. Não uma merda grande, mas atritos que foram resolvidos com uma conversa para aparar as poucas arestas que restavam. Somos um monstro de duas cabeças. Vale morder os outros, mas sem se atacar. É assim que tem funcionado.

Ele é tosco, verdade seja dita. Em um jantar de harmonização, ele terminou a taça de vinho antes de o prato ter chegado. O maître ficou indignado. Sem carboidratos, ele vira um bicho. A galera daqui é testemunha de uma dieta que, quando chegou ao fim, chamamos de momento de pacificação. Porém, no geral, é só tamanho mesmo. Ele é um Sulley. Era para assustar as criancinhas, mas o efeito é contrário.

Ele é obsessivo. Prometeu que desenharia mais, faz um desenho encrenca por dia. Colocou na cabeça que vai aprender a tocar guitarra, logo mais vai estar tirando solos do Stevie Ray Vaughan. Decidiu que a fotografia vai ser o seu trabalho na aposentadoria, já descolou uma viagem para fazer um curso na Índia. Ele é o seu próprio treinador.

Minhas filhas o chamam de Cacão, o que dá noção do tempo que estamos nessa estrada. E do carinho construído. E aqui, volto a falar de tempo como quem procura um fechamento do texto. Quatro centésimos. Olhe de novo no cronômetro. Esses centésimos deram a ele uma nova carreira, uma família linda, um lugar para o qual ele não precisa olhar para o placar. Quatro centésimos. Menos que um tic. O tempo que eu precisei para ganhar um dupla, um amigo, um irmão, um sócio. E – por que não dizer? – um segurança.

 

 

 

 

Vini e o chocolate escondido na gaveta.

Um dia a minha filha indagou: pai, eu nunca sei quando você está falando sério ou ironizando. A irmã respondeu: dessa vez era ironia. E eu falei: é um treino para a vida.

Corte abrupto de narrativa.

Eu e o Marcão conversamos com o Chuck Porter por telefone muito antes do começo da CP+B Brasil. Na ligação, o Chuck falou poucas coisas (como de costume). Entre elas: vamos seguir em frente; preciso de um business plan. Travamos. Como fazer um business plan?

Nesse momento da história, surge a figura do Vinicius Reis. Ou melhor: o Vini. Um amigo de longa data do Marcão que segundo consta nos alfarrábios publicitários tinha o apelido de presidente até quando era estagiário. Eu não o conhecia. O Vini arrumou o tal plano de negócios, voamos para Miami e a agência nasceu.

Vini era uma ponta, eu era a outra, Marcão no meio equilibrava as forças. A sociedade funcionava assim. Se fosse muito para o meu lado, caos. Se fosse muito para o lado do Vini, obsessão por detalhes. E a disputa acontecia. Quando  mais crica ele era, mais eu não seguia as regras. Quanto mais eu não seguia as regras, bem, você entendeu. Do jeito que estava sendo desenhado, tinha tudo para ganhar o prêmio de cabo de guerra mais estúpido do ano.

Marcão já cansado de fazer o papel de juiz, as duas pontas extenuadas, soltamos a corda. E começamos a nos entender. O que me leva a essa reflexão agora no aniversário da coisinha mais obsessiva do mundo, o Vini.

Em geral, fala-se muito dos caras da criação. E pouco dos caras de negócio. Serei sucinto aqui: sem o Vini, a gente estaria falido ou preso. Não havia outra hipótese. Ele é o cara que vai abrindo a picada na mata fechada, eu e o Marcão chegamos na sequência arrancando um erva daninha aqui e ali e tentando fazer os sinais para que as pessoas prefiram essa estrada. O trabalho dele é mais árduo que o nosso, acredite. Se não acredita, tente acompanhar um dia na agenda dele de ligações, anotações, pensamentos sobre como crescer e onde erramos. Um exemplo disso? Quando estávamos na obra da agência, ele pediu para a gente checar o que parecia errado. Com esforço, anotamos 27 falhas. Ele chegou em 154. E ainda provou que o teto do andar era levemente torto.

O Vini entende muito de criação. A gente aprendeu com ele a entender sobre o negócio. E a respeitar as decisões dele. Eu já começo a semana sabendo que vou ouvir um “trânsito do Morumbi tá foda”, “puta que pariu, sócios”, “que semana, hein?”, “Má, gatinha, depois te ligo”. Eu sei que ele não vai me ouvir na primeira vez e vai repetir o que eu falei como se fosse algo inédito logo depois. Que vai procurar erro de digitação em cada apresentação. Ele circula pelo mesmo assunto até ter certeza que não há nada equivocado. É o nosso João Gilberto cantando “O Pato” em looping, só que o gato não pula da janela nessa história.

No fim do ano passado, eu o chamei de tutor em um post. Muita gente viu ironia. Volto, então, às minhas filhas. Eu estava falando sério daquela vez. O Vini foi o meu treinador para uma vida de empresário para a qual eu não estava preparado. Até sapato ele me fez comprar. Nessa sociedade, só temo pelas comidas que deixamos na mesa. Toda a classe e estilo do nosso V.R., o Vila Romana Vinicius Reis, vai embora quando se trata de roubar um quitute. Feliz aniversário, Bibicius, Que a vida seja repleta de gavetas com chocolates escondidos.