Dos monstros da nossa cabeça

Quando o algoritmo joga a favor, ele traz um encadeamento mais profundo do que o esperado. Não sei qual foi a primeira peça da minha fileira, aquela que se posicionou ali e ficou “Ei, clica aqui. Prometo não decepcionar!”. Só sei que ela trouxe uma pequena e fortuita sequência de vídeos e frases que foram se somando, aos poucos. Por não lembrar exatamente como isso se iniciou, vou eleger o primeiro episódio da série “Dinners with DeMar”. Nesse episódio, o astro da NBA DeMar DeRozan conversa com o não menos famoso e controverso Draymond Green. Dois homens pretos, famosos, milionários, cercados de fãs, conversando abertamente sobre uma série de assuntos pouco falados. Aos trinta minutos, vem um petardo que torna impossível você não se conectar minimamente. Draymond Green, tetracampeão da NBA, talvez o cara mais casca-grossa de toda a Liga, solta a seguinte frase:

– Eu tenho uma questão: me ajude a fazer terapia. Como alguém que já fez isso, tipo, me ajuda porque eu não consigo sozinho.

E o que ouvimos do DeRozan é:

– Eu era do mesmo jeito, exatamente do mesmo jeito. Eu arrumava qualquer desculpa para não ir. Um pouco mais adiante, Draymond consegue ser ainda mais explícito em sua vulnerabilidade: – Eu sinto que a terapia vai revelar algumas merdas que eu talvez não esteja pronto para lidar, mas uma vez que está revelado, eu não vou poder deixar de lidar. Recomendo assistir ao episódio completo. É doloroso, bonito, corajoso, necessário.

Na segunda posição da fileira, um vídeo curtinho extraído de um “Papo de Segunda”. Emicida – personagem com presença constante no que escrevo, porque eu o trato com a reverência de quem encontrou um saber, um conhecer das coisas do mundo que o eleva a outro patamar – é quem fala dessa vez. Diz ele: – A psicóloga da minha filha falou ‘Leandro, talvez te falte repertório emocional’. Quando ela falou esse barato, a minha reação foi abrir um sorriso. Mas dentro da minha cabeça, explodiu a bomba de Hiroshima.

Do Emicida pulo para o José Mujica, ex-presidente do Uruguai, que surgiu na minha timeline em um recorte de uma entrevista. E o que ele diz é simples e complicado ao mesmo tempo: – A vida não é só trabalhar. Há que se deixar um bom capítulo para as loucuras que cada um tem. Você é livre quando gasta o tempo com as coisas que te motivam. Um pouco mais à frente, ele complementa: – Para sentir as coisas, é preciso dedicar tempo a elas, também. O problema é: com o que você gasta o tempo da vida?

Há uma sequência longa que o algoritmo tem me disponibilizado desde um momento zero que não sei definir. Para cada momento sugerido, tenho buscado refletir sobre o porquê de ele ter me mostrado tal corte, trecho ou qualquer coisa que o valha.

No começo do ano passado, fui convidado a participar de um podcast chamado Ad Therapy, criado e conduzido com muito cuidado pelo Alê Freire. Acredito que a gravação tenha sido em abril de 2023. O episódio só foi ao ar em janeiro de 2024. Como não consigo me escutar de forma alguma, pessoas muito próximas – e também conhecidos e desconhecidos – foram trazendo alguns trechos dos quais não me recordava de ter falado. E isso, de certa maneira, pode ter iniciado esse raro alinhamento de benfeitorias algorítmicas, trazendo novas camadas, mais profundas, para internalizar.

Na conversa do Demar DeRozan com o Draymond Green, os dois donos do seu pedaço da quadra, dominantes, expõem-se de uma maneira muito inesperada. Cruzam aquela fronteira mental, aquela voz interna que diz que só pessoas fracas colocam para fora as suas fragilidades. Eles parecem tocar na mesma falta de repertório emocional que fez explodir uma bomba de Hiroshima no Emicida.

Vivemos um tempo de soluções rápidas, de fórmulas fáceis. Estamos tão absolutamente carentes de tempo, que tudo que é fácil de digerir aparece embalado em um discurso quase messiânico que promete a rota direta para o sucesso, para a felicidade. E compramos sem pensar. Porque refletir também nos “rouba” tempo. E aí, na escassez do tempo – o tempo que o Mujica defende –, o coach de vida prospera.

Acredito que resida nessa minha desconfiança em gurus de teorias a jato o reconhecimento de que sem o longo processo – por vezes doloroso – da terapia, as bombas continuariam a explodir. Aqueles monstros que ocupam os pensamentos teriam muito mais tempo para atormentar. Por isso, é preciso olhar nos olhos dos monstros para reconhecer que eles são parte de você. Mas não são 100% você.

P.S.: Finalizo o texto logo após uma sessão sobre saúde mental no SXSW. E pego as palavras do jogador de futebol americano Solomon Thomas: “Às vezes, é ok não estar ok”. Por mais que os gurus da receita da felicidade instantânea faturem alto dizendo o contrário.

Estique-se

O vendedor ambulante caminhava pelas areias quentes de Copacabana carregando duas hastes de madeira ou cabos de vassoura improvisados. Dessas hastes, os mais diversos penduricalhos sacudiam, mais pelo seu andar do que pelo quase inexistente vento. As crianças miravam aquelas bolas Dente de Leite a balançar, os baldinhos, as pás, as mais variadas bugigangas coloridas. Tudo a reluzir ao sol. Já os adolescentes e os adultos guardavam uma estranha fascinação por água oxigenada e Blondor, para descolorir os pelos do corpo, e por uns pequenos saquinhos de plástico, com um formato de travesseiro, recheados de um líquido que até parecia doce de leite, mas era um bronzeador de origem inexplicada, melhor, desconhecida. Ao lado deles, podia-se vislumbrar um Rayito de Sol, o suprassumo do bronzeamento daquela época, mas nem sempre acessível. Os adultos frequentemente usavam o travesseirinho de bronzeador. Minha mãe usava. O cheiro de bronzeador é uma das lembranças que guardo em minha memória bem ao lado do cheiro de chuva no asfalto e do cheiro de gasolina – que entrava por todo o carro – no posto de combustível.

Nos anos 80, havia ainda uma grande obsessão pelo bronzeamento, sem qualquer menção ao uso de filtro solar. A barreira física que os surfistas usavam era Hipoglós mesmo. Quando usavam, é claro. Havia uma imensa fileira de gente torrando ao sol quase que inocentemente. E as fórmulas caseiras se espalhavam pela areia sem grandes questionamentos. Alguém dizia: usa óleo caseiro de urucum. E pá, a pessoa usava. Era comum o uso de Coca-Cola, manteiga, misturebas mil. Um amigo teve uma queimadura de sei lá qual grau pelo uso de óleo de avião em busca da torra perfeita. Ao menos era o que se dizia na praia. Mas filtro solar era palavra rara e quando o Sundown chegou, houve quem dissesse que era bobagem. Estilo quando começaram com a exigência de cinto de segurança no Brasil. De modo que, quando o texto da Mary Schmich chamado “Use filtro solar” ganhou a internet sendo atribuído ao Kurt Vonnegut ou até mesmo ao Pedro Bial (que deu voz à versão em português), o estrago na minha pele já estava feito. Palavras da primeira dermatologista que fui em São Paulo.

Pequeno corte para contar esse episódio da dermatologista. Entro no consultório dela para ver alguma coisa no rosto. Uma mancha ou algo do gênero. Qual não foi a minha surpresa quando ela pediu para eu ficar de cueca. Eu reforcei: mas é no rosto. Ela me respondeu: eu ouvi o seu sotaque carioca e sei que você deve ter ficado muito exposto ao sol. Desde então, lá se foram algumas pintas suspeitas retiradas até da sola do pé, o começo do uso de filtro solar 60 e do bloqueador solar com barreira física.

Falo disso tudo porque revisitei o texto em questão e ele tem coisas premonitórias em relação ao que iríamos vivenciar na sequência dos anos. E como mencionei que o filtro solar veio tarde para mim, cito uma outra palavra que ali reside. Lá pelo meio do texto, há um comando que só me foi importante quando a lombar já doía: estique-se. Portanto, na minha atualização e audácia mental, mudaria um pouco a formulação: “Se eu pudesse dar só uma dica sobre o futuro, seria esta: use filtro solar. E se eu pudesse dar duas, diria também: estique-se.”

Do ponto de vista mais banal ou tragicômico, se você nunca teve uma travada gostosa nas costas, você não pode imaginar a vergonha solitária que é ter uma cueca no chão, encaixar os pés e ficar rezando para ela subir por livre e espontânea vontade. Ou decidir ir trabalhar sem meia porque lhe foi impossível o ato. E começar a optar por tênis sem cadarço por motivos que você já consegue imaginar. Quando eu era moleque, ninguém falava para valer de alongamento. “Você tem que comer para crescer”. “Pratique esportes”. “Fique forte”. Alongamento era aquele pequeno asterisco no final do contrato dessas frases. E o chão era um lugar muito distante da palma da mão. Com muita sorte, uma ponta de dedo ralava no asfalto. Foi preciso a dor para descobrir que eu tenho que me alongar. E alongar, curiosamente, dói antes de nos fazer relaxar.

Do ponto de vista da filosofia “minutos de sabedoria”, há toda uma crença de que devemos ser rígidos, fortes, duros para conquistar resultados. É muito comum ouvir a frase “nunca me arrependo de nada”. E o que a gente descobre em algum momento é que as nossas certezas mais inflexíveis são desconstruídas com o tempo, como se ocorresse uma erosão imposta pelos fatos da vida. Bom, isso para quem se permite o autoquestionamento com a prepotência que impõe aos outros. O impávido e tranquilo Bruce Lee dizia a seguinte frase: “Observe que a árvore mais dura é mais facilmente rachada, enquanto o bambu ou salgueiro sobrevivem dobrando-se com o vento”. Falei que eram minutos de sabedoria neste parágrafo. Flexibilidade é, também, poder se livrar das certezas que perderam o sentido. Esticar quem você pode ser para além daquilo que você já foi. Ou não quer ser mais. Dói, também.

Do ponto de vista das metáforas para tempos atuais, gente encurtada de pensamento cansa a alma. Porque sem alongamento os argumentos não saem do raso, não tocam em nada que importe. Gente encurtada de pensamento só anda entre os seus, não escuta nada que venha de fora, vende o temor como forma de proteção. Alguns, mais habilidosos, criam até formas de ganhar dinheiro com suas fórmulas “coachinianas” que simplificam tudo a alguns passos. Desencurtar dói e a maioria prefere o conforto de não ter que confrontar a si próprio ou aos que o cercam.

Talvez alguém tenha me falado de alongamento e eu não tenha dado importância ao longo do tempo. Foi preciso uma cueca me dizer isso do chão. Ela, ali, inalcançável. Uma simples roupa íntima a me lembrar da patetice de um sujeito com a mobilidade de um tronco de massaranduba e a dizer repetidamente: estique-se de todas as formas. Vai doer. E sobre essa dor, fecho com um trecho de um texto do Jonathan Franzen. Coisa de uns doze anos atrás: “Quando levamos em conta a alternativa — um sonho anestesiado de autossuficiência, incentivado pela tecnologia —, a dor emerge como produto natural e indicador natural de que estamos vivos num mundo resistente. Passar pela vida e não sofrer é não viver.”

Dos tempos de gerar ansiedade

Alto do pódio. A torcida brasileira comemora aos berros e cantos. Filipe Toledo levanta o seu merecido troféu de bicampeão mundial de surfe. Minutos antes, em uma entrevista, Filipe disse as seguintes palavras: “Foram muitos pensamentos ruins, na questão da segurança, se eu ia conseguir ganhar de novo”.

Um salto no tempo, dois anos antes dessa fala. No episódio “Vencendo Demônios”, da série “Make or Break”, Filipe Toledo fala abertamente sobre a sua depressão, um tema não muito compartilhado no mundo do surfe. Filipe era a aposta de todos para ser campeão desde a sua chegada à WSL, mas ele relata: “Quando fiquei perto de ganhar o circuito, tinha algo errado, um sentimento sombrio”. Era uma pressão que ele mesmo impunha, mas que vinha carregada da expectativa externa e da constante crítica sobre ele ter algum problema com ondas grandes.

É possível vislumbrar toda a pressão, uma bomba de sentimentos prestes a explodir. E que explode frente a todos em relatos que exibem uma sensação de não estar 100% no surfe, nem 100% com a família, de não estar 100% em nada. É um episódio tocante, revelador e corajoso. Desde então, Filipe Toledo é o meu surfista favorito no circuito, por quem eu mais torço. Porque, além de redefinir a maneira de surfar algumas ondas, além da velocidade e da beleza das linhas que ele desenha, Filipe é um herói possível.

Quando comecei no curioso mundo da propaganda, lidava com a pressão interna de um iniciante. Será que eu sou bom? Será que é isso mesmo que eu quero? Eram questionamentos comuns em todas as profissões. Havia a indústria de prêmios, mas com muito menos categorias e festivais, o que já trazia uma pressão extra em comparação com a dos outros amigos de diferentes áreas. Era mais suportável, porque sabíamos muito pouco uns sobre os outros. A gente conhecia as peças, as agências, os estilos, algumas pessoas, mas não era algo que tínhamos de lidar a todo instante. Vários profissionais que eu admirava, eu nem sabia como eram os rostos e muito menos que roupas usavam. Desse jeito, era como se fossem personagens imaginários, seres que mais me inspiravam do que me afligiam.

Acho que nenhum livro de ficção científica foi capaz de imaginar as redes sociais. Júlio Verne anteviu uma pá de coisas. A viagem à Lua, mesmo, ele imaginou em 1865. Da Vinci previu e desenhou invenções que só viraram realidade séculos depois. Os Jetsons tinham chamadas por vídeo, entre tantas coisas. As redes sociais não foram previstas com tamanha antecedência. Elas chegaram, foram se multiplicando e trazendo um mar de possibilidades. E, com elas, vieram problemas pouco discutidos e que tendem a se agravar. Talvez porque a gente acredite que não seja possível levantar pontos críticos para algo em que estamos inseridos e que é parte extremamente relevante do negócio para todos nós. E, antes que me batam por críticas ao Linkedln, em um texto que também estará naquela rede, penso que o exercício da reflexão em tempos que não pensamos profundamente sobre quase nada se faz ainda mais necessário. Refletir, enfrentar nossos anseios, desconstruir crenças, ponderar, filtrar e seguir. Vale para qualquer contexto no qual estejamos inseridos. Há um podcast de surfe cujo bordão é surfers are the worst.

Guardo uma relação muito difusa com o Linkedln. Abandonei a rede por duas vezes, por motivos distintos. Na segunda vez, o contexto de pandemia somado à urgência de afirmar “o novo normal”, “as lives vieram para ficar”, entre tantas outras teses, foi demais. Não obstante a ansiedade de não saber quando chegaria uma vacina, eu me vi diante da ansiedade de ter que falar, de ter que postar, de ter que afirmar algo sem muita certeza, de construir uma persona inquebrável. Voltei sem saber o porquê, mas aprendi com o meu dupla Marcão a não ficar descendo demais na timeline, como forma de criar um lugar respirável.

Penso que se estivesse chegando agora ao mercado, estaria triplamente ansioso porque a pressão externa para construir uma persona aumentou demais. Penso nos introvertidos, nas pessoas que fazem um grande trabalho e se sentem obrigadas a gerar mais conteúdo sobre elas mesmas. Penso nas conquistas que agora são exibidas ao infinito e, certamente, fazem alguém (plural) se sentir não tão capaz. Nos textos que criam epopeias para explicar uma ideia que nada tem de mais. Na pouca troca de conhecimento, porque exibimos as vitórias, mas nos eximimos de nos aprofundar nas falhas e derrotas. Penso em uma frase que já usei, mas lamento não lembrar o autor: “posto, logo existo”. O que é um dilema e tanto!

Há pouquíssimo tempo, ouvi a expressão “pandemia do narcisismo” no episódio “Aprisionados”, do podcast intitulado “Elefantes na Neblina”, que recomendo. Não posso falar da felicidade de uma expressão resumir tão bem o sentimento reinante, porque pode ser uma felicidade maquiada. Nunca fomos tão narcísicos, tão brabos com foguinhos, tão fodas, tão retroalimentados. Ao mesmo tempo, nunca fomos tão ansiosos. O que leva a crer que alguém que faz questão sempre de se mostrar infalível pode estar quebrado em algum recanto. Afinal, não é possível que todo mundo seja 100% foda. A constante reafirmação desse campo pode ser apenas uma forma de insegurança. A nossa timeline – quem sabe? – tem ares de embuste.

No podcast do Mano Brown, o Casagrande fala que no processo de reabilitação das drogas, ele descobriu que a vida é mediana. Ele buscava a sensação de estar sempre no pico, mas uma simples peça de teatro, quando sóbrio, revelou que a vida pode ser um pouco sem graça, muitas vezes. E, assim, ele foi tendo que redescobrir prazer nas coisas mais cotidianas. Na nossa carreira, nem sempre estaremos no pico, como os perfis fazem crer. Cabe a cada um de nós a busca por um sentimento de completude que independe de ter que se fazer sempre foda. A vida tem de ter graça também na sua simplicidade. Para Filipe Toledo, a retomada se deu por ele estar sempre perto do que denomina família (amigos inclusos). Quer coisa mais banal e essencial do que essa?

A impaciência nossa de cada dia

“Um dos orgulhos que ele tinha era a capacidade de ouvir podcasts na mais alta velocidade possível. Assim, ele criava uma falsa sensação de que poderia dar conta de estar em sintonia com centenas de podcasts por ano. Tarefa essa fadada ao fracasso completo, visto que só no Spotify existem mais de 5 milhões de títulos de podcast. Em contrapartida, ele passou a demonstrar impaciência nos diálogos da vida real. Quando alguém falava, tudo o que ele queria era uma função para avançar a velocidade da conversa. E diante da frustração de não ver o seu desejo realizado, ele logo entrava em um estado de ansiedade, que, para segurar o ímpeto de atropelar a fala do outro, balançava os pés e cravava levemente as unhas na lateral das coxas.”

“Ela começou a avançar os diálogos no WhatsApp, em uma busca por eficiência. Assim, ela acreditava poder realizar mais tarefas utilizando esse ganho de tempo. Como o motorista que força aquela ultrapassagem pelo acostamento e chega ao destino cinco minutos antes de você. Ela se sentia movida por pequenas recompensas, então cada áudio acelerado era um ponto a mais na sua capacidade de ser multitarefa.”

Os trechos acima são uma mescla de artigos e reportagens que li a respeito da tendência cotidiana de acelerar áudios e vídeos. Em inglês, existe até um trocadilho para nomear os praticantes ou viciados nessa prática, quando o assunto é podcast: podfasters. A aceleração de áudio é algo que evito desde o seu surgimento, porque já sou ansioso o suficiente, logo não preciso de estímulos extras. E faço essa escolha mais por instinto de preservação do que propriamente por saber o que estava por trás daquele simples hábito. Àquela pulada da abertura da Netflix, eu cedi rapidamente, confesso. Para o restante, criei um alerta que, por não conseguir explicar o porquê, tive que ir atrás de informações e estudos sobre o que vem a reboque dessa nossa impaciência cotidiana para simples esperas.

“Acelerar tudo o que estiver ao alcance é um sintoma de uma sociedade que busca efetividade, produtividade e fazer tudo o mais rápido possível”. Isso é o que diz o Dr. Marcuetta Simms, psicólogo e fundador do The Worth, Wisdom and Wellness Center.

Até um eletrodoméstico, o processador multiúso, é incapaz de fazer todas as funções ao mesmo tempo. Só que nós, seres humanos egocentrados, batemos no peito e falamos: eu faço tudo simultaneamente. A gente comprou, corroborou e espalhou que ser multitarefa era uma grande qualidade, quando na imensa maioria dos casos, o que se tem é uma atenção fragmentada e extremamente prejudicada sobre diversos assuntos.

Um dado que muito me espanta é que essas aceleradas ingênuas atrapalham a nossa capacidade de identificar e sentir prazer. Porque essas pequenas gratificações que sentimos ao terminar tarefas de forma passiva, sem grande esforço, liberam dopamina. E como fazemos isso diversas vezes por dia, essa sensação de prazer e de motivação que vem com a dopamina começa a exigir estímulos mais intensos. Acontece que na vida real não é exatamente desse jeito que as coisas acontecem. Assim, um simples pôr do sol deixa de ser um lugar de deleite, dando lugar a “esse troço não desce mais rápido, não?”.

Supervalorizamos tudo o que pode ser compreendido como eficiência e desvalorizamos o tédio. Ficar parado sem fazer nada pode ser interpretado pelo nosso cérebro como uma ofensa a todo um sistema de recompensas: “Como assim você não quer aquela dopaminazinha?”. Só que o tédio é um campo vasto para a criatividade. Foi no tédio que uma criança olhou para uma caixa vazia e fez dela uma espaçonave. Foi no tédio que alguém teve a ideia de procurar formas de bichos nas nuvens ou na sombra da vela. Foi no tédio que castelos imaginários foram criados, fossos com jacarés de plástico foram construídos. Foi no tédio que alguém pegou uma raquete, uma rede de vôlei e uma peteca e criou o badminton (ok, pode ter sido em um churrasco repleto de embriagados). Importante ressaltar que o ócio também vive muito bem sem a criatividade. Às vezes, a gente só precisa de um tempo quieto cortando a unha do dedão sem pensar em mais nada do que aquela tarefa banal. Quem já tirou um bife do dedo sabe que não tem como ser multitarefa na hora de cortar as unhas.

Nessa nossa impaciência cotidiana, estamos perdendo o tempo das coisas e nem nos damos conta disso. Do mesmo jeito que há uma vontade de acelerar os diálogos da vida real, parece haver uma vontade de pular etapas. Ou aproximar todas elas. Hoje, é possível observar um desenho de carreira que uma pessoa sai da posição de assistente para um cargo de direção de criação em uma janela de cinco anos. Em um ano, já queremos uma promoção. Salta-se de júnior para sênior como quem acelera áudio no módulo voz de esquilo chapado de cocaína. Perdem-se partes importantes do processo. Um companheiro desses diálogos de observação é Felipe Silva. É dele que pego um resumo surgido dia desses: “Estão pulando etapas para acelerar, mas não estão acelerando o domínio da profissão”. Sim. Há uma corrida para o pote no fim do arco-íris que é feita sem perceber as cores no caminho. E ao chegar lá, descobre-se a necessidade de outro pote. E mais outro. E mais outro. Criamos para nós mesmos a falsa sensação de que seremos capazes de aprender tudo em altíssima velocidade. E alguém ainda irá falar sobre a capacidade elástica de um cérebro nascido nesses tempos, o que os neurocientistas também refutam porque há informação e estímulo em demasiado para todos nós. E queremos de tudo a mesma urgência que está à disposição nos nossos dedos – dos relacionamentos amorosos, da carreira, das amizades, da vida –, quando, na verdade, a felicidade e o prazer são construções que exigem a nossa doação.

No livro “O Sentido da Vida”, Contardo Calligaris ressalta, entre tantos saberes,  que é preciso dedicar tempo para se atentar ao que nos cerca. “Uma cultura distraída nunca será uma cultura hedonista, porque, simplesmente, nunca será uma cultura disposta a fruir a vida com uma intensidade que valha a pena”. E fruir a vida, aqui, significa lidar com os prazeres e as decepções com atenção. Porque por mais que a gente acredite estar no controle remoto do mundo, acelerar uma decepção não a fará doer menos lá na frente. Porque até para isso precisamos da velocidade baixa para assentar. Pois, então, que a gente saiba honrar o tempo com o cuidado que o tempo merece. É o que desejo para você e repito em mantra para mim.

Das consistências da gelatina

Uma sobremesa clássica da infância – aquela que invariavelmente estava em muitas geladeiras, uma verdadeira guerreira do cotidiano, capaz de assumir as mais diferentes formas – era a danada da gelatina. Ela reinava nos lares de forma serelepe e dominante. Na forma mais clássica, uma “gelatinona” grande, que podia estar dentro de um recipiente ou desenformada gloriosamente em um prato. Ou, ainda, dividida em pequenos potes, que ocupavam uma prateleira da geladeira. Os times se dividiam entre os que escolhiam pela cor e os que escolhiam pelo sabor. Eu sempre apostei no clássico morango.

Um outro jeito de apresentar era jogar frutas picadas em quadradinhos dentro da gelatina. Em geral, maçã ou abacaxi. Aí, surgia uma gelatina mágica com frutas que pareciam congeladas tal e qual o Han Solo, n’O Retorno de Jedi. Um quadrado de maçã suspenso, dentro de uma redoma colorida, tinha o seu valor para a criançada. Para os dias de festa, surgia uma gelatina que era misturada com creme de leite dando um aspecto mezzo espuma, mezzo nuvem. Era uma gelatina aerada caseira por assim dizer. Uma coisa que se fosse num restaurante Michelin ganharia o nome de: névoa elevada de berries. Tinha também uma que parecia trabalhosa que consistia em pequenos cubos de gelatina de diferentes sabores envoltos numa mistura de creme de leite com leite condensado. Que vinha a ser o mix de leite em pó com leite condensado, presente no açaí de hoje em dia.

Algumas poucas coisas podem derrubar a consistência perfeita de uma gelatina. O erro primário é o excesso de água versus a quantidade de gelatina, que cria uma decepção à primeira colherada. Surge uma gelatina mole, que foge da tigela em qualquer fechada da porta da geladeira. Uma coisa meio geleca, um brinquedo clássico da época, que deixava um cheiro infernal nas mãos. O outro erro é inverso. O excesso de gelatina versus a quantidade de água. Que cria uma versão Rei Arthur do mundo invertido da colher. Para ter o seu reinado de sabor, é preciso enfiar a colher naquela argamassa dura, verde ou rosa. Muitos fracassaram ao longo da história.

O mesmo pensamento da consistência da gelatina penso que possa valer para a consistência das marcas. Em uma época em que tudo é efêmero, estamos sendo tomados pela angústia de estar presente em todas as efemeridades possíveis. É o meme da capivara? Bora mergulhar nessa. É o novo influenciador que surgiu quebrando recordes? Bora nele. Mas isso sem fazer a pergunta básica: eu deveria estar nesse assunto? Eu realmente tenho alguma conexão com o que está sendo dito? Isso é relevante para o meu público? Tentados a surfar toda onda da vez, vamos perdendo consistência, sem perceber. Mas se puxar o relatório com os números da marca, isso fica nítido.

Uma outra maneira de colocar muita água na gelatina é mudar de território e conceito como quem muda de roupa. E aqui cabem várias motivações. A principal delas é a sensação de que precisamos imprimir a nossa marca pessoal. Vale para um novo diretor de marketing, vale para a nova agência. Nessa vaidade de fazer acontecer ao seu jeito, esquece-se o histórico da marca. E surgem coisas que não têm um fluxo de continuidade. Em vez de um passo, um duplo twist carpado para fora da área do tablado. E o consumidor, lá fora, que não viu nenhuma daquelas longas apresentações, fica sem entender ou sem reter que marca é aquela agora. E vai se criando um clima terrível de consistência de geleca.

Fico intrigado que alguém olhou para o conceito “Good things come for those who wait” de Guinness e pensou: acho que deu, né? E chegou a essa conclusão, talvez, porque confundimos o GRP interno das reuniões com o que os consumidores captam da marca. O fato é que mudaram um conceito que faz ainda mais sentido num mundo em que ninguém tem paciência para esperar nada. Nem vou comentar sobre a distância astronômica entre o filme dos surfistas para qualquer coisa que aconteça agora. Esse filme hoje seria barrado com alguns argumentos: pouca presença de marca, muito escuro, não faz sentido, nosso público não se identifica com cavalos.

Na contramão, Nike ressignifica “Just do it” desde o início dos anos 1980. Se antes eles falavam sobre “você não ganha a prata, você perde o ouro”, eles entenderam que era preciso mudar ao longo do tempo. E, décadas depois, passaram a valorizar a última colocada da maratona. Tudo sob o mantra do “Just do it”. A Nike entende que a consistência rígida, sem flexibilidade, também é um problema a longo prazo. Tem que equilibrar a água e a gelatina nas proporções certas para balançar conforme o tempo. E lembrar que até a gelatina já foi ressignificada numa mistura em que a água dá lugar a uma vodka de procedência duvidosa para fazer o esquenta da balada. Não recomendo essa mistura porque a ressaca parece uma dengue sabor drink Chevette.

É preciso estar atento às tentações de cair na conversa da vez. Um desses pensadores de espasmos soltou, um tempo atrás: toda marca tem que ter um podcast, porque biriri-bororó. Em seguida, muitos likes, porque adoramos verdades absolutas. E faltavam as perguntas: toda marca? A marca vai falar sobre o quê? Tem assunto para quantos episódios? Faz sentido para a estratégia? Eu mesmo ouvi pessoalmente numa profecia ameaçadora que a Vice acabaria com as agências. Enfim.

Consistência de comunicação é importante para o mercado de gelatinas. Sou de uma geração que sabia que “abra a boca” era assinatura de uma marca. E tenho quase certeza de que essa marca era a que mais aparecia na geladeira de casa. Todo mundo pode e deve amar efemeridades como entretenimento e abraçar aquelas que fazem sentido para a estratégia. Porém, não imagino que alguém deseje de verdade uma construção efêmera de marca.

P.S.: a minha memória de infância ainda se faz presente em muitos e muitos lares pelo Brasil.

Geladeira que gela. Fogão que esquenta.

Como era trabalhar na F/Nazca? Essa questão ainda surge algumas vezes ao meu redor. Ela carrega curiosidade, um tico de lamento e uma sensação de que a agência continua a existir, mesmo não estando mais ali. É como uma lembrança vívida que toma corpo e volta para a Av. República do Líbano, 253. E nos carrega junto para aquela temperatura interna de criogenia a contrastar com o calor do parque, logo ali, defronte. Tomado por essas recordações, eu me pego buscando imagens e frases daqueles tempos, porque haviam ensinamentos que eram proferidos como se simples frases fossem. “Outdoor é menor do que anúncio de revista” era uma delas. Eu voltava para a minha mesa como quem encontrou o Mestre dos Magos e pensava “O que ele quis dizer com isso?”. Por sorte, o Mestre dos Magos não desaparecia e ainda tínhamos a oferta de uma segunda pergunta, que invariavelmente era a repetição do pensamento “O que você quis dizer com isso?”. E aí, o Fabio Fernandes falava sobre o tempo de leitura que um outdoor entrega ao consumidor. E insistia que a gente precisava ser mais sucinto. Quando o assunto eram os spots de rádio, ele sempre cravava: “Não me venha com spot que parece ser o diálogo entre dois locutores!”. E a gente entendia que era necessário criar toda uma atmosfera para mostrar ao ouvinte que aquela peça publicitária era diferente da programação da rádio. Não por acaso, muitos spots viraram filmes depois.

Há uma dessas frases que tenho lembrado – e pensado – bastante: “Não podemos criar campanhas sobre a geladeira que gela e o fogão que esquenta”. Essa máxima costumava surgir no meio de um trabalho importante. Não bastasse a entrega para dali uns dias, a gente tinha que decifrar esse enigma no meio do caminho. Já que fica menos curioso quem é cara de pau, eu pedi uma explicação que não fosse ao estilo Caverna do Dragão. Então, ele discorreu sobre a importância de encontrar um diferencial emocional que não fosse óbvio, que fizesse o consumidor pensar que já tinha escutado aquilo em algum lugar, que bebesse da cultura popular das ruas e do entretenimento para fazer da entrega algo inédito, mas, ainda assim, de fácil identificação e que, claro, significasse muito mais do que a geladeira que gela. E assim nasceram tantas campanhas que o consumidor se recorda até os dias de hoje. O “Formiguinhas”, da Philco, nada mais é do que um comercial que vende um aparelho de som de alta potência enquanto diverte o consumidor. Foi Leão de Ouro e fez parte da cultura brasileira porque não há uma dissonância entre vender e divertir o público. Há, sim, uma confluência. 

Confluência essa que caiu um pouco em desuso nos últimos tempos. Talvez pelo nosso afã de fugir da palavra vender, talvez por acharmos que a palavra publicidade ficou feia – ou menos importante? – diante da palavra entretenimento. Assim, vamos criando novos termos, novos adjetivos, novas denominações, todo um esforço para dizer que aquilo que se faz não é publicidade. É outra coisa, esconjuro! E o que advém disso, com relativa frequência, é uma dificuldade de achar um diferencial do produto por aquilo que ele faz. Porque soa simplório apenas vender; logo, precisamos nos imbuir de um espírito maior. Aí, é mais fácil encontrar uma ação de um aspirador de pó que “eliminou” a rinite alérgica, por um dia, em um vilarejo do interior (tudo com muitos dados), do que uma peça publicitária que venda criativamente aquilo que o aspirador de pó faz em sua forma mais simples. E há de se ter equilíbrio.

Não está aqui a defesa de que não devemos buscar esse espírito maior. Tampouco trata-se de uma fuga da busca por um propósito que esteja conectado com a marca. Em um mundo em que o consumidor cobrará cada vez mais responsabilidades das marcas (porque está cada vez mais descrente dos governos) é preciso cavar fundo para fugir do propósito de superfície. Porém, devemos estar sempre atentos para não nos distanciarmos demasiado do que aquela marca, produto ou serviço faz. Porque o consumidor e a consumidora nunca acompanham aqueles keynotes e PPTs que tomamos como verdades absolutas em reuniões. Eles simplesmente têm coisas mais importantes para lembrar. É nossa tarefa facilitar a lembrança de marca numa cabeça totalmente tomada de assuntos. 

Eu não entendi muito o porquê de um dos GPs de Filme de Cannes ter sido aquele  comercial da Apple. Não me encantou, mas isso é subjetivo. Penso que talvez o júri tenha decidido dar um recado sobre o produto como o centro da mensagem e premiar a volta do humor, esse assunto esquecido porque as marcas – quem sabe? – têm se levado a sério demais. O GP de Outdoor pareceu rumar no mesmo sentido. O GP de Mobile é tão simples, mas tão simples, que é difícil de chegar à ideia. Porque nos dias de hoje, parece que, para ser bom, tem que ser complicado. E para ser grandioso, a regra é conectar a Nasa a um fornecedor desconhecido e mexer em quatro satélites. É como a confusão que sempre se dá com as produções caras que dizem quase nada: “Qual é a ideia aí mesmo?”. 

Faz falta, de vez em quando, “o fogão que esquenta” como mensagem. Melhor dizendo, faz falta uma panela de feijão temperado com alho, aquela folha de louro, umas carnes para dar gosto, uma panela que vai em cima do fogão que esquenta toda essa malemolência. Assim como faz falta aquela propaganda sem medo de ser propaganda e com menos medo ainda de ser brasileira: “Histórias para morar”, do Quinto Andar, “Elis Regina e Maria Rita”, da VW, e uma da Caixa Econômica Federal, que está rolando, com redação do Rynaldo Gondim, são algumas recentes que me vêm à cabeça. Quando um cartum circula tirando onda do fato de que na hora que as marcas chegam, a graça do meme desaparece, pode ser uma dica para a gente variar um pouco a receita. Pode ser que seja. Ou não.

Não se assuste pessoa

Pensei em escrever a respeito da desastrosa estratégia de campanha do Ciro Gomes e das armadilhas que moram no ato de fazer as coisas com certo ressentimento. Desisti. Caminhei pelo lado oposto, então. Depois de ver o Gabigol mudar o comportamento de um estádio inteiro na sequência de um pênalti, pensei em escrever sobre a relação magnética que ele conseguiu construir com a torcida do Flamengo e os mistérios que cercam essa conexão mágica estabelecida. Deixei de lado. Pensei em outros dois temas a respeito de literatura. Um sobre um livro que me causou profundo impacto, o Escute as Feras, da antropóloga francesa Nastassja Martin. Outro sobre a experiência de ler o primeiro livro no Kindle: o poderoso, doloroso e feminino Tudo é Rio, da Carla Madeira. Uma experiência que me fez traçar um longo caminho de tudo que li fisicamente na vida. A começar pelo personagem Tistu, do livro O Menino do Dedo Verde. Achei que o segundo tema tinha mais caldo para um artigo, mas o deixei em uma marinada para uma próxima vez. Refleti se não deveria voltar aos temas mais próximos do mercado de comunicação. Percorri a possibilidade de redigir sobre a falta de memória na propaganda e as ocorrências cada vez mais curtas de ideias similares. A chegada de Elon Musk no Twitter também pareceu um assunto tentador. Afinal, ele tem deixado no ar que não está muito aí para as fake news e tem andado num discurso que soa perigoso, como quem passeia sobre um campo minado sem tomar conhecimento do risco. Se bem que o adjetivo “perigoso” parece uma palavra rasa para o que vem a reboque desse pensamento. Outro tópico: a relação entre propagar fake news e mentir os números nos videocases da vida tende a render um bom tema, mas desisti porque agora tento pautar os textos para um lugar mais agregador. Olhei novamente para a experiência da primeira leitura no Kindle. Escreveria sobre o cheiro dos livros e a praticidade (que demorei a aceitar) na hora de colocar opções de leitura na mochila. Tirei o texto da marinada de 4 dias na geladeira, desenhei o primeiro parágrafo, até que tudo parou de súbito. O tempo cessou quando Gal Costa faleceu. E fui tomado por uma sensação de que não estou muito preparado para a partida de pessoas que criaram melodias que fazem parte  da minha vida, de muitas vidas.

Desde o momento da notícia da partida de Gal, dedico espaços de tempo para contemplar vídeos dela nos palcos. Vejo também depoimentos emocionados de Gil, Caetano e Bethânia. Há uma cena da Gal cantando uma música no show do Djavan. Ela parece muito feliz na plateia. Recolhi esses fragmentos de vídeos, músicas, falas. Assisto a tudo, ora com lágrimas de tristeza – porque soou como uma injustiça do tempo –, ora com lágrimas de alegria – porque me lembro que esse tempo que parece injusto é o mesmo que o Caetano cantou como sendo inventivo e capaz de dar um brilho definido ao espírito. Gal, uma cantora que rompeu barreiras, que deu nome às dunas de Ipanema, que definiu sonoridades tão distintas na maneira de cantar, é um desses espíritos de um brilho definido. Sei que é a segunda vez em sequência que a música domina este recanto, mas não é à toa que o nome deste espaço é Qualquer Coisa. Diz sobre a liberdade de temas (para além do nosso mercado) e um universo plural onde habitam Gal, Gil, Bethânia, os Novos Baianos, Milton, Melodia, Djavan, Boldrin, Clara Nunes e tantas outras magias.

A finitude de alguém que a gente gosta nos faz relembrar da nossa própria finitude. Ecoa do mesmo modo ao pensar na finitude de pessoas que parecem ocupar um grupo desse alguém que se foi. São pensamentos que a gente finge que não existem, mas eles estão por lá, à espreita. No caso de Gal, há um intrínseco emaranhado que se conectou de todas as formas possíveis dentro de mim. E imagino que dentro de muitos outros. É indissociável pensar em Gal e pensar em Bethânia e pensar Gil que me faz pensar em Caetano que me faz pensar em djavanear. Assim como foi impossível assistir ao Milton na turnê A Última Sessão de Música e não sentir o peso e a beleza de admitir publicamente a palavra “última”. Porque pensar na despedida é refletir sobre todos os caminhos percorridos até aqui. No caso de Milton, a emoção brotou na primeira canção tão logo ele cantou “ponta de areia, ponto final”. Porque falar de um ponto final no primeiro verso da primeira música do último show é todo um ciclo de uma vida.

Quando Gal se foi, o Luiz Antônio Simas postou, com a sabedoria de sempre: “De onde tiraram essa ideia estapafúrdia de que ela morreu? Eu, por exemplo, estou escutando Gal cantar agora; como os netos dos netos dos nossos netos escutarão.” Conecto esse saber com outro saber que a Pixar trouxe da cultura mexicana na lindíssima animação Viva – A Vida é uma Festa: ideia de que para uma pessoa continuar a existir no mundo dos mortos é preciso que a gente a cultive na nossa memória. Como disse Bethânia: a saudade vai ficar, eu quero que fique. 

O último disco de vinil que comprei para a minha coleção foi o Fa-tal – Gal a todo vapor. Comprei porque queria manter viva em mim a memória de que a minha mãe falava muito do impacto de estar nesse show por diferentes noites. E, assim, minha mãe continua a existir. Comprei porque no encerramento do ano de uma das minhas filhas, uma das músicas escolhidas foi Dê um Rolê. E havia uma beleza ímpar em adolescentes cantando “não se assuste, pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa” na versão de Gal. E se eles acreditam, se Gal acreditava, eu tendo a acreditar mais nessa ideia. No final, o último artigo do ano não é sobre perda. É sobre o começo do que vem pela frente quando alguém se vai. Que 2023 seja mais amor, da cabeça aos pés.


Salve Jorge

O chiado da cebola dourando na manteiga, o barulho da chuva batendo no asfalto em um dia quente, o apitinho do final do bocejo de um cachorro, o primeiro milho que estoura na pipoqueira, o timbre da guitarra do B.B. King, o som de uma onda quebrando em um dia de ressaca, o tom aveludado da voz da Ella Fitzgerald, o cantar dos passarinhos na primeira luz da manhã, aquele “tsssss” da cerveja sendo aberta na sexta fim do dia, o breve silêncio da torcida no segundo que precede o gol, o som da quietude que reside embaixo de uma árvore frondosa, a lembrança do sinal do recreio, a gaita e qualquer nota saindo da boca do Stevie Wonder, o estalo da agulha encostando no vinil, o saxofone que abre “What’s Going On”, o aviso de “ó o mate” nas praias do Rio, a água quando entra na panela do arroz, o riso quando vira gargalhada na boca de  um bebê, ouvir uma música ao acaso que relembra minhas filhas pequenas, o violão na introdução de “Menina mulher da pele preta”. Tudo isso faz parte do universo de sons que me trazem uma alegria instantânea. Uma alegria que invade sem pedir licença e assenta as coisas como aqueles flocos do globo de neve tocando o solo depois de uma sacolejada. 

De todos esses sons, destaco aqui o impacto espiritual que Jorge Ben Jor traz a cada vez que o escuto. Porque sempre parece haver nele uma revelação, uma camada que antes não compreendia em sua total dimensão e que, então, surge abrindo novos lugares. Foi o que aconteceu quando escutei o terceiro episódio do podcast Projeto Querino, da Rádio Novelo e do jornalista Tiago Rogero, um podcast fundamental para entender a história pouco contada sobre o Brasil e de como chegamos sem mudar muito no lamaçal dos dias de hoje. Contei sobre o episódio para o meu amigo Renan Valadares e ele abriu um outro portal. Um documentário de dez capítulos, em áudio, nomeado “Imbatível ao extremo: assim é Jorge Ben Jor!”. No meu universo musical, Jorge é uma espécie de deus. Faltavam-me, porém, palavras que me explicassem a amplitude da sabedoria que ele carrega. 

Jorge abriu um caminho completamente novo na música brasileira. Sem Jorge, uma boa parte do que ouvimos hoje talvez não existisse. Porque é ele que, desde o seu primeiro sucesso, cria uma dimensão nova em abordar ritmos e sonoridades. Armando Pittigliani, produtor musical do primeiro disco, relata que conheceu Jorge por recomendação de um amigo. A pedido de Armando, o menino tocou violão. Em segundos, Armando diz para ele parar de tocar e pede para trazerem um contrato. Nas palavras dele: “esse cara pode não cantar nada, mas esse violão vai ficar só comigo”. Só que, aí, Jorge cantou. E o que veio? O canto em iorubá: Oh, ariá-raió. Obá, Obá, Obá. Armando diz que se arrepia até hoje com a lembrança. “Mas que nada” foi lançada em 1963 e até hoje é difícil estabelecer uma definição para aquele ritmo. Parece bossa, parece samba, já tem sambalanço, tem batida de candomblé, evoca tambores no violão. Acho emblemático que na capa do disco tenham apagado  o banco onde Jorge estava sentado. E o que fica é a imagem de um homem que flutua com seu violão, como uma entidade que nunca se acomoda.

O professor e crítico cultural Acauam Oliveira diz no episódio do Projeto Querino, denominado “Chove Chuva”: “Essa ideia do Jorge Ben, idealizador de uma mitologia negra idealizada a partir do amor, e não da dor, pensado para fora do que o colonizador fez do nosso povo… É um horizonte de liberdade tão grande, é tão pensado para fora do que o racismo faz de nós, que o cara fez um disco sobre alquimia. Aquele disco é uma das experiências mais radicais em termos de liberdade temática.” O disco mencionado é o “A tábua de esmeralda”, um dos mais importantes da música brasileira. Muitas vezes, guardei comigo a impressão de que Jorge Ben Jor não é levado a sério por uma grande parte das pessoas. Já ouvi que o ritmo é fácil, que é musiquinha de festa, que as letras não fazem sentido. Entendo agora que desmerecer Jorge sob esses argumentos sempre teve uma camada de racismo que tenta dizer que aquela liberdade ali é algo menor. Melhor ficar com a impressão de Gilberto Gil, que, ao ouvir Jorge pela primeira vez, disse aos amigos: “Bom, agora eu acho que não preciso nem pensar mais em ficar fazendo música e coisas deste tipo, basta eu cantar Jorge Ben que já está legal”. Para Gil, Jorge elaborou um afrobrasileirismo tão decantado que gerou todas as novas correntes da música. Em 1975, os dois estiveram juntos em um exercício completo de liberdade criativa no antológico álbum “Gil e Jorge: Oxum, Xangô”. 

Jorge Ben Jor tem uma criatividade inclassificável. É difícil pensar como Jorge, compor como Jorge, compreender Jorge, tocar o violão de Jorge. Ele mesmo, um tímido e avesso às entrevistas, dá poucas pistas sobre os seus processos criativos. Achei um dossiê compilado pelo Marcelo Pinheiro e de lá puxo uma rara fala de Jorge: “(…) Meu trabalho é de raízes, mais para o popular. Quando faço uma canção, faço primeiro para mim, porque eu gosto de música, mas daí eu as testo em crianças. Se elas gostam é porque é boa mesmo. Eu quero é fazer um som que seja universal, mesmo sendo cantado em português”. Ele conseguiu. Discos de vinil do Jorge são desejados em todos os recantos do mundo. 

Há anos atrás, escrevi sobre uma vontade de morar no universo das canções de Jorge e da vontade de encontrar o homem da gravata florida para lhe pedir emprestado o seu relatório de harmonia de coisas belas. Era só um pedaço do que compreendia de Jorge. Ao escutar Acauam Oliveira dizer que Jorge canta perdoando as dores do mundo e que isso é de uma sabedoria ancestral absurda, penso que quando Jorge canta sobre torcer pela paz, pela alegria, pelo amor e pelas coisas úteis que se pode comprar com 10 cruzeiros, ele, tal e qual um ser elevado, torce para além dele, torce por todo um Brasil. Salve, Jorge!

Quando a estrada não dobra de tamanho

Foto: Marcos Medeiros

Somos afeitos aos clichês. Um dia, você é um jovem incomodado com os familiares que lhe encontram e dizem “Nossa, como você está grande! Dia desses, estava no meu colo”.  No outro, você está a repetir essa frase para as crianças que começam a surgir à volta, com o passar dos anos. 

Um dia, você é uma pequena criatura a ouvir de um adulto: aproveite porque tudo passa rápido. Você faz cara de simpático porque desde muito cedo foi ensinado a mentir socialmente para agradar aos outros, mas bufa internamente. No outro, você reflete sentado em uma cadeira de praia, daquelas que tombam a qualquer movimento: estou aproveitando a vida? Você se distrai, a cadeira fecha em si mesma e suas costas avisam que haverá uma demora para sair daquela situação constrangedora. Se até aqui você aprendeu a rir da vida, vai sorrir enquanto bate a areia do corpo e tenta remontar a cadeira. O guarda-sol é arrastado pelo vento nesse momento. Você corre atrás dele na velocidade dos acontecimentos da vida. Porque, como dizem os mais velhos: é tudo num piscar de olhos.

Desde pequeno, tenho uma relação de curiosidade com o tempo. No jornal O Globo, havia uma coluna que repetia os fatos marcantes que aconteceram 50 anos antes naquele mesmo dia. Eu me lembro de quando a minha sogra viu um momento que ela se lembrava de ter vivido com 7 anos. Ela cantou a música que marcava aquele evento e tudo. Recordo de fazer contas quando completava um aniversário e pensava sobre o que os meus pais estavam fazendo quando tinham a mesma idade. Sou de uma geração que imaginava como estaria quando o tal ano 2000 chegasse, como se algo mágico pudesse ocorrer naquela data. Nada ocorreu além novas promessas e beijos emocionados ao som e à luz de fogos de artifícios. Por mais que a gente tente prever as coisas ou desenhar o futuro, a vida se impõe trazendo fatos nunca imaginados. 

Estou perto de completar cinquenta anos de idade. Cruzar os trinta foi como atravessar uma camada de neblina da espessura de um carpaccio. Zero problema. Não me vi muito reflexivo sobre a passagem dos quarenta anos, tampouco. Lembro apenas da decisão de não pintar o cabelo e usar bloqueador solar. Aos quarenta, talvez eu desejasse que a estrada à frente pudesse ter o mesmo tamanho de tempo pelos anos a seguir. O que me deixava sereno. Cinquenta anos é quando você sabe que dificilmente terá o dobro do tempo. Pela primeira vez, estou refletindo profundamente sobre o que vem pela frente. 

Nesse período, um texto do Julián Fuks chegou às minhas mãos e trouxe junto mais uma faixa de reflexão que ressoa em mim. Diz, em uma parte: 

“Algo em nossa época, algo que se relaciona à exposição constante de cada uma das nossas conquistas, por ínfima e irrelevante que seja, parece provocar em nós uma sanha maior pelo reconhecimento dos outros. O desejo de sucesso se fez mais intenso e mais universal, o desejo de um sucesso que já não pode ser parcial ou menor, não pode ser a mera identificação de uma qualidade entre tantas. Deseja-se tudo, ser bom, ser grande, ser vastamente conhecido pelos demais, e ganhar muito dinheiro a partir disso. O que resulta da imensidade desta ambição é uma forte tendência à insatisfação, e uma ansiedade bem difundida.” 

Em um artigo que também falava sobre a passagem do tempo, a Cris Naumovs lançou as questões: “Você sabe que tretas quer comprar? Que pedras quer carregar?” Para completar, o Raphael Despirite, com a sua escrita muito solta e sem freio de mão puxado, tem tocado constantemente no estoicismo. Através dele, cheguei à frase de Sêneca que diz “Esperar é o maior obstáculo para viver.” 

Esperamos os likes, as palminhas, os seguidores subirem. Esperamos ser aprovados pelas nossas postagens, pelo que dizemos, pelo que não dizemos. Esperamos reconhecimento quase sempre em uma escala difícil de ser preenchida. Moldamos a nossa imagem para que toda essa espera valha a pena e nos frustramos porque esse amor desmedido por si mesmo tem espelhos demais ao redor. Há quem lide bem com isso, e outros fingem lidar. 

Nessa reflexão sobre os anos por vir, imagino que essas pequenas aprovações serão ainda mais intensificadas. Coloquei a conta de uma rede social para hibernar, desliguei uma outra, posto coisas banais em mais outra. Tento não ser mais refém, ainda com insucesso, de armadilhas que eu mesmo fui criando para saciar essas esperas diárias. Parei, também, de romantizar as relações de trabalho. Alguns dias são duros, outros são felizes. Ter equilíbrio não é estar parado em uma posição única. É um eterno balançar, de leve, para lá e para cá, na corda bamba das relações.  

Outro exercício é não criar grandes conjecturas sobre o futuro. E fazer as pazes com arrependimentos do passado. Se tem algo que a gente deveria ter aprendido com a pandemia é que a gente controla bem pouca coisa. Como disse certa vez o filósofo Mike Tyson: todo mundo tem uma estratégia até tomar um soco na cara. A descoberta de que não é possível dominar tudo pode ser libertadora.

Todas as outras coisas que desenhei na cabeça envolvem uma busca de quietude e de baixar as expectativas. Julgar menos, pegar onda sempre que possível, dar bom dia mesmo que não te devolvam a gentileza, aproveitar a minha família, estar colado nas pessoas que comprariam as minhas brigas e vice-versa, ler mais e evitar consumir áudios e vídeos em velocidade acelerada, porque a vida já é demasiado corrida.

De mais a mais, jogo um pedido (ou dois) no ar: que eu envelheça aprendendo e o meu cérebro não engasgue. E, se não for pedir muito, não quero ficar com pelos para fora das narinas e das orelhas. Deus me poupe de ser um velho com orelhas peludas e antenas de baratinha para fora do nariz. Por desencargo, vou estocar aparador de pelo de nariz portátil desde já.

O que está acontecendo?

Há um momento em que começo a me afastar da cidade de São Paulo. Quando as luzes diminuem, dando lugar aos faróis dos automóveis ávidos por chegarem a outro destino. Nesse momento, quando sinto que o silêncio começa a se fazer mais presente, dou lugar a uma voz que tem sido constante na rota entre a cidade de São Paulo e a praia de Camburi. São duas horas e vinte minutos na previsão do aplicativo, tempo suficiente para um episódio do podcast Discoteca Básica e para, em seguida, ouvir o disco que foi destrinchado com sabedoria pela voz do jornalista Ricardo Alexandre. Em uma dessas viagens dentro de uma viagem, uma passagem sobre um dos álbuns mais importantes da história, “What’s Going On” – do Marvin Gaye, ficou anotada na cabeça. Resolvi falar com o Ricardo Alexandre e ouvir um pouco mais sobre o assunto. Dessa aula, sai o texto a seguir.

Entre 1962 e 1971, a gravadora Motown, que se intitulava o som da América jovem, havia colocado nada mais, nada menos do que 240 hits no top 40 das rádios norte-americanas. Um número impressionante, fruto de uma visão revolucionária e fortemente empresarial na concepção de hits ao lado dos seus artistas, quase todos negros, aliada à uma construção de sonoridades particulares que influenciaram a música pop como conhecemos até hoje, de Beatles a Beyoncé, de Bob Marley a Frank Ocean. O trabalho da Motown era quase fabril, com a mentalidade de uma linha de produção, com padrão de qualidade, mas dependente de criar em grande escala. Fazia-se muito e aproveitava-se o que engajava mais em formato de baladas, canções românticas e músicas dançantes. E essa fórmula deu muito certo. Nomes? Diana Ross & The Supremes, Stevie Wonder (um dos deuses do meu Olimpo musical), The Four Tops, The Temptations, The Jackson Five, Martha Reeves and The Vandellas e, é claro, Marvin Gaye. 

Marvin, o personagem principal do texto, a voz que parece uma divindade por si só, entra em conflito com esse jeito de criar da Motown e com a sua própria produção. Não obstante ele tem que lidar com a dor do falecimento precoce da parceira musical Tammi Terrell (de Ain’t no Mountain High Enough), com os relatos do irmão que retornara da Guerra no Vietnã, com a violência policial, com o racismo. Nesse balaio todo, Renaldo “Obie” Benson, dos Four Tops, começa a escrever a canção “What’s Going On” depois de testemunhar a polícia atirar contra estudantes no Parque do Povo, em Berkeley, episódio que ficou conhecido como “Quinta-feira Sangrenta”. A frase, que viria depois a se tornar o título da música, é uma reação imediata aos fatos: o que está acontecendo? Al Cleveland entra no bolo e aumenta o espectro da letra; depois, Marvin Gaye chega para dar aquela temperada final no que viria a ser uma das melhores canções de todos os tempos. E aqui começa toda uma peleja com a Motown.

Nas palavras do Ricardo Alexandre, uma explicação para essa inquietação de Marvin: “A arte joga sempre com o imprevisível, com o suspeito, com o impensável. Ela tenta materializar o que foge das estatísticas.” Mas como provar isso dentro de um contexto em que tudo funcionava tão bem? Bom, quando Barry Gordy, o dono da Motown, ouviu a canção pronta, disse apenas: “É a pior coisa que eu já ouvi na vida”. No outro canto do embate, Marvin Gaye exclamava sobre a estranheza de cantar canções de amor com um mundo explodindo à volta. Próximo round.

O controle de qualidade da Motown reprova a música, Marvin pega o seu boné e diz que só voltaria se a canção fosse lançada. Não era bravata. Fato consumado, a gravadora fica sem canções do seu astro para o Natal daquele ano. Cabe ao produtor Harry Balk o papel de sensato e louco ao mesmo tempo. Ele vai contra Barry Gordy, manda prensar 100 mil cópias do single e lança na marra. Sucesso instantâneo nas paradas, “What’s Going On” começa ali a garantir o seu lugar na história, indo contra todas as boas e pretensamente infalíveis fórmulas da Motown.

Parênteses para um detalhe sobre a importância de respeitar o acaso: se você ouvir a música, vai perceber uma sobreposição de vozes do próprio Marvin Gaye. Parece uma ideia genial, pensada e trabalhada, mas foi um acaso. O cantor tinha o costume de registrar diversos takes de voz para escolher a melhor interpretação. Na hora de ouvir, o engenheiro de som colocou, sem querer, dois canais tocando simultaneamente. Marvin usou essa combinação para dar uma camada a mais de molho na canção. Sugiro que procurem no YouTube por registros do canto de Marvin sem os instrumentos. É uma experiência de outro universo.

Continuo com mais uma frase do Ricardo Alexandre: “Eu acredito na cultura de mercado, na arte de consumo… eu não acho que essa seja uma dimensão inimiga da criatividade…” Segue ele: “Por outro lado, se um departamento comercial de marketing que não respeita e não valoriza o artista rebelde, o artista de confronto, a arte fica dominada pela resposta previsível que se pode quantificar e mensurar pelas pesquisas. Isso leva a uma arte estagnada. Leva a uma indústria que só produz o que o público já disse que quer consumir.”

Para finalizar, pergunto sobre um certo otimismo dele em acreditar que a criatividade sempre rompe as barreiras. Ao que ele respondeu: “Em algum momento, os departamentos de marketing tiveram de admitir que talvez Madonna misturando religião com pistas de dança pudesse agradar, que a Legião Urbana com músicas quilométricas e letras sem refrão pudesse funcionar, que talvez Roberto Carlos romper com a fórmula da Jovem Guarda pudesse ser um sucesso. A história mostrou que a ousadia dá certo.” 

Há um momento em que o carro começa a se afastar de Camburi. É quando penso: o que os bastidores de um disco nos reservam desta vez? Toca o próximo episódio. Longa vida à criatividade, aos artistas rebeldes e aos contadores dessas histórias musicais.